GT do Sentido da Vida

Anões, esse GT vai ser grande pra caralho
AVISO: Apesar de parecer, esse GT não é mais uma história romântica clichê, confie em mim. Sério, não é.
PRÓLOGO:
>oi, eu sou o… bem, isso não importa
>tudo o que você precisa saber é que minha vida é um saco
>eu tenho depressão
>mas não como esses frutinhas, suicidas de facebook
>eu realmente tinha depressão
>uma vez um professor meu com quem eu conversava muito me disse que eu tinha um tal “niilismo existencial”
>é o nome para o que eu sinto
>mas essa história não é sobre isso
>é sobre como minha vida mudou para sempre
>era uma sexta-feira qualquer de 2004
>eu tinha 16 anos e era o meu primeiro emprego
>eu trabalhava em uma locadora
>meu sonho era ser um cineasta
>por enquanto, aquele era o melhor emprego para mim
>eu ficava o dia inteiro assistindo filmes
>as vezes eu precisava parar para atendente clientes
>mas nada que me incomodasse, afinal é o meu trabalho
>em um desses dias, uma garota apareceu lá
>ela era bonita, bem bonita, mas eu não dei muita atenção para isso
>era só mais uma cliente, já passei da fase de me apaixonar por pessoas aleatórias que nunca vou ver outra vez
>enfim
>faltava apenas 7 minutos para eu fechar a locadora
>algumas pessoas, principalmente mulheres, amam demorar pra caralho enquanto escolhem um filme
>então eu não só não liguei para a beleza dela, como não gostei que ela aparecesse
>tava pensando o quê?
>que eu ia olhar os lindos cabelos loiros dela, os olhos azuis e a pele clara e lisa, e sentiria uma atração inexplicável por ela?
>vai tomar no cu
>isso aqui não é um livro adolescente
>para minha surpresa ela foi bem rápida
>pegou três DVD’s
>isso era bom
>não pude deixar de notar que ela trocou os adesivos dos DVD’s por outros
>caso você seja um juvenil de bosta, deixa eu explicar:
>em algumas locadoras os DVD’s tinham adesivos
>cada adesivo tinha uma cor, na minha locadora eram 3
>o adesivo dourado, o prata e o vermelho
>o dourado era 9 reais, o prata 6, e o vermelho 3
>quase não tinham DVD’s com adesivos dourados
>a maioria era vermelho, e alguns pratas
>quanto melhor fosse o filme, mais chances do adesivo dele ser dourado
>quando ela trouxe os DVD’s, logo saquei tudo
>ela não sabia, mas eu conhecia praticamente cada um daqueles filmes
>ela tinha pego 3 filmes bem antigos
>Luzes da Cidade, Cantando na Chuva e Último Tango em Pariz
>TODOS OS TRÊS ERAM DVD’S DE ADESIVOS DOURADOS
>estavam com adesivos vermelhos
>ela sequer se deu ao trabalho de disfarçar, colocar pelo menos um dourado
>se fossem ao menos prata, mas vermelhos?
>um filme com Charlie Chaplin, outro com Genne Kelly e outro com Marlon Brando
>TODOS OS TRÊS VERMELHOS? AH, VSF!
>eu tive que prender a risada
>-dá 27 reais, moça – eu disse, colocando em uma sacola
>-não, dá 9 reais! - ela respondeu
>-daria, se fossem filmes com adesivos vermelhos.
>ela apontou para um dos DVD’s, motrando o adesivo
>-eu vi você trocando os adesivos
>-eu não tr…
>antes que ela terminasse eu apontei para uma câmera
>depois apontei para o monitor no meu balcão
>ela se calou, ficou meio sem graça
>ela ficou MUITO sem graça, na verdade
>-olha, eu não queria te constranger, mas…
>-não, tá tudo bem, desculpa por isso.
>porra
>ela realmente parecia muito bolada
>ou era uma ótima atriz
>o que não me surpreendia, já que era aparentemente uma cinéfila
>porra de novo
>eu realmente fiquei com pena dela
>-tá tudo bem, ninguém precisa saber… - eu disse, piscando o olho para ela
>ela me olhou estranho, acho que não tinha entendido
>-hum, vejamos o que temos aqui… - eu disso ironicamente, olhando para os DVD’s – olhe só! 3 DVD’s com adesivos vermelhos.
>ela riu
>o sorriso dela era lindo
>-são 9 reais, moça.
>ela tirou o dinheiro da bolsa
>eu entreguei a sacola para ela
>-posso saber em quais DVD’s você colocou os adesivos dourados?
>ela não respondeu
>agora tinham 3 filmes horríveis custando 27 reais na nossa locadora
>-tá bem… já tem cadastro?
>-Ágata Vila-Flor
>-hum, vida longa à Portugal! - respondi ironicamente enquanto procurava no computador
>ela estava devendo outros 13 filmes
>puta que pariu, qual é o problema dessa garota?
>eu simplesmente ignorei, não sei dizer o motivo
>-tudo bem, você tem o final de semana inteiro
>-obrigado – ela respondeu, e foi embora
>mas antes que ela passasse pela porta, eu chamei sua atenção novamente
>-como você sabia?
>ela se virou para mim
>-sabia o quê?
>-como você sabia que eu não ia falar dos 13 filmes que você não devolveu?
>ela simplesmente sorriu e foi embora
Depois do fim de semana…
>segunda-feira
>aguardei ela chegar para entregar os DVD’s, mas ela não apareceu
>é claro que eu esperava por isso
>na hora de fechar, pensei em esperar um pouco
>no dia que ela tinha pegou os DVD’s era bem tarde
>mas depois de dez minutos eu desisti e fui embora
>terça-feira
>eu pensei que talvez ela aparecesse
>mas acho que ela não estaria disposta a pagar multa por atraso
>quer dizer, ela não tinha nem 27 reais para os 3 filmes que pegou naquela noite
>imagina pagar a multa de atraso de todos os 13 filmes?
>era um real por dia, e o primeiro filme que ela alugou foi há 1 mês
>fico me perguntando como meu avô deixou isso acontecer (era ele que tomava conta da locadora antes de mim, na verdade a locadora é dele)
>agora ele está muito doente pra isso, mas não vem ao caso
>quarta-feira
>eu já tinha desistido
>ela definitivamente era uma ladra de filmes
>ainda assim algo me fez esperar 10 minutos novamente
>eu sentia que ela apareceria... senti errado
>desisti e fui emborra
>à noite, nenhuma novidade
>apenas eu trancado no meu quarto assistindo uma sitcom para amenizar meus problemas psicológicos de merda
>durante a manhã eu estudava
>no colégio a professora de Português me passou uma atividade
>eu tinha que fazer a resenha de um livro
>ela escolheu um livro para cada aluno
>mas não os entregou
>era para a gente arranjar os livros
>um sortudo ficou encarregado de fazer a resenha de Eu, Robô
>eu manjo muito de ficção científica
>mas fiquei encarregado de fazer a resenha de um livro chamado 1984
>de um tal de George Orwell
>não conhecia, mas ela falou que era um misto de romance com ficção científica
>que merda
>eu procurei pelo livro na biblioteca do colégio, mas não encontrei
>agora eu tinha que achar essa porra
>tinha uma biblioteca perto do colégio, provavelmente eu o encontraria lá
>do colégio fui direto para a biblioteca
>chegando lá, algo intrigante aconteceu
>eu encontrei ninguém menos do que ela: a ladra de filmes
...
>eu me aproximei dela, ela ainda não tinha me visto
>estava folheando um livro de frente para uma prateleira
>- você também rouba livros? - perguntei, a pegando de surpresa
>ela continuou de costas para mim, e colocou o livro de volta na prateleira
>- você demorou de me achar! - ela disse, se virando
>- você queria que eu te encontrasse? - eu perguntei, intrigado
>- claro que não! - ele negou, com um tom de deboche – mas eu sabia que você iria tentar.
>- se quer saber, não te encontrei aqui intencionalmente.
>- não?
>- não, preciso pegar um liv…
>nesse momento eu percebi que o livro que ela colocou na prateleira era justamente o que eu estava procurando: 1984, de George Orwell
>ela percebeu que eu fiquei olhando para ele, então ela o pegou novamente
>- você quer isso? - ela perguntou rindo
>- é, era ele que eu tava procurando. Vai roubar primeiro?
>- é uma biblioteca, eu não preciso roubar.
>- você não devolve os filmes.
>- mas devolvo os livros, e quer saber? Eu não te devo satisfação nenhuma.
>ela simplesmente foi até a bibliotecária com o livro
>- ei, o livro! - eu gritei
>- eu vi primeiro… - ela disse, piscando o olho para mim antes de falar com a bibliotecária
>bem, eu não podia simplesmente tomar dela
>tecnicamente ela tinha o direito de pegar o livro, ela viu primeiro
>eu precisava pensar em algo
>então decidi segui-la
>assim que ela saiu da biblioteca eu saí também
>tentei manter distância durante todo o percusso
>ela seguiu por um caminho que passava por um parque
>depois ela deu a volta por um condomínio próximo
>tinha um campo verde enorme
>tinha muito verde pela frente, e depois do verde tinha a areia, as pedras e o mar
>ela estava saindo da cidade
>e pior, pela pista
>eu a segui, mas se ela olhasse para trás me veria
>não tinha onde eu me esconder, eu não ia me esgueirar por árvores feito um imbecil
>o “passeio” deve ter durado meia-hora
>no meio do caminho ela finalmente teve a ideia de olhar para trás
>- você consegue chegar lá sem morrer? Tá suando e respirando igual a um porco há uns quize minutos.
>ela sabia o tempo todo que eu estava seguindo ela
>eu devia ter previsto isso
>- não quer saber por que eu tô te seguindo?
>- não, eu não ligo pra você.
>um bom tempo depois finalmente chegamos no litoral
>eu não fui até as pedras, pois a água estava batendo nelas e eu ia me molhar
>mas ela foi até lá, mesmo com o livro
>- cuidado para não molhar o livro! - eu gritei, irritado
>- isso não é problema seu. - ela respondeu
>ela conseguia ser mais irritante que qualquer pessoa que eu já conheci
>mas eu tinha um bom plano
>ou ao menos um que ia servir por agora
>tentaria chantagear ela com a dívida dos DVD’s
>- você tá me ouvindo? - gritei
>- não! - ela gritou de volta
>não sei se ela pensou que isso seria engraçado
>tanto faz, eu simplesmente fui para mais perto dela
>- eu preciso do livro. - eu disse
>- é, eu também.
>- sério, eu tenho uma atividade no colégio valendo ponto, e preciso dele.
>- não tô te ouvindo direito, por que você não vem mais pra perto?”
>eu me aproximei ainda mais, por algum motivo, mesmo sabendo que ela só tava curtindo com a minha cara
>- por favor, eu preciso desses pontos.
>ela se levantou da pedra onde estava sentada
>- vem aqui pegar…
>- eu não vou jogar esse tipo de jogo!
>- foi o que eu pensei – ela disse, se sentando outra vez
>aquilo soou como um desafio para mim
>tomei coragem e fui até lá
>- é assim que vai ser? - eu perguntei
>ela se levantou rindo, e me encarou esperando que eu tentasse pegar o livro
>eu fui na direção dela, e ela fez a coisa mais doida que alguém já ousou fazer comigo
>ela simplesmente me empurrou e eu caí no mar
>mas tinha um problema: eu não sei nadar
>eu comecei a me debater na água, enquanto subia e descia várias vezes
>não era o que eu estava planejando para a minha sexta-feira
>há uma semana ela tinha trocado adesivos de DVD’s da locadora em que eu trabalho, e eu achei isso radical
>ela ficou rindo de mim, talvez achou que eu estivesse sendo dramático
>ou talvez ela só fosse uma psicopata do caralho
>felizmente ela não era, pois quando percebeu que era sério, parou de rir no mesmo momento
>ela se jogou na água e me ajudou
>que ótimo, agora eu fui salvo pela pessoa que eu pretendo tomar um livro
>se eu tinha algum resto de dignidade, eu perdi naquele momento
>- você tá bem? - ela perguntou
>eu não consegui responder
>- é, acho que eu vou ter que fazer respiração boca a boca…
>nesse momento meu coração disparou
>- brincadeira! - ela disse rindo, e então deu um murro na minha barriga
>eu tossi e depois cuspi toda a água que tinha engolido
>- se as pessoas soubessem que isso funciona, os filmes de romance iriam perder a magia – ela disse se levantando.
>o quê? Você pensou que iríamos nos apaixonar depois dela salvar minha vida?
>eu já te avisei que isso não é um romance clichê
>mas o fato de que eu entrei em uma euforia anormal quando ela sugeriu respiração boca-a-boca me deixou intrigado
>mas acho que não tem problema nenhum com isso, ela era bonita e ia me beijar
>não é como se eu sentisse algo por ela ou coisa assim
>enfim
>depois disso eu me levantei e olhei para a minha roupa
>eu definitivamente preferia ter morrido afogado
>eu tava completamente encharcado
>- você não sabe nadar… - ela comentou, rindo
>- você acha? - eu disse, enquanto parti para cima dela para pegar o livro de novo
>diplomacia não é o forte dela, eu devia saber
>ela fugiu de mim por um tempo, e parecia estar se divertindo com isso
>até que eu finalmente a agarrei pelo braço
>qualquer pessoa que visse aquilo pensaria que era um casal curtindo
>nesse momento nos encaramos olho no olho
>só então eu percebi o quanto ela era bonita
>é óbvio que eu já tinha reparado que ela era bonita, mas… ela era MUITO bonita
>mas eu esqueci isso no mesmo momento, porque para meu desespero ela simplesmente jogou o livro no mar
>- você não fez isso… - eu olhava para o mar, incrédulo
>eu percorri de uma biblioteca até uma porra de praia, por um livro que ela tinha acabado de jogar na água
>- você deve querer muito esses pontos… - ela disse rindo, enquanto olhava para o mar também
>por um momento eu tive vontade de matar ela
>bem, ninguém tava vendo, então seria uma bela oportunidade
>- por que? - eu perguntei olhando para ela, desesperado
>ela deu de ombros
>- você é sempre assim tão… monótono?
>- monótono? Você acha que só porque eu não roubo DVD’s e jogo livros no mar eu sou monótono?
>- se eu fosse você, eu teria depressão…
>okay, eu entendo que ela não teve a intenção
>mas doeu tanto quanto aquele murro na barriga
>ela percebeu que eu fiquei mais sério depois que ela falou isso
>- você não tem depressão, tem?
>eu respirei fundo
>- é melhor juntar dinheiro, sua ladra maluca! - eu disse apontando o dedo na cara dela – porque você tem uma multa muito cara para pagar lá na locadora
>- eu não vou pagar nada e você sabe disso.
>-vamos ver! - eu disse, e fui embora
>eu estava com muita raiva dela
>ela tinha ultrapassado todos os limites
>falar da minha depressão foi o fim da picada
>- ei, idiota! - ela gritou, mas eu não olhei para trás
>ela tentou me acompanhar
>- sai de perto de mim! - eu disse, apontando para longe
>- eu sei onde conseguir outro livro daquele.
>eu parei
>meu orgulho não queria deixar, mas eu precisava do livro
>- eu tô ouvindo – disse, cruzando os braços
>- em outra biblioteca – ela disse rindo
>- você é uma idiota…
>segui meu caminho, me concentrando em não quebrar meu código de honra: não bater em mulheres
>- você é um bebê chorão! - ela gritou, já longe
>- essa foi a coisa mais imatura que eu ouvi em anos! - gritei de volta
>- chorar é mais imaturo ainda!
>eu ignorei, apenas segui meu caminho
>eu tinha o fim de semana para conseguir outro exemplar de 1984
>mas aquilo não ia sair barato, literalmente não, ela ia pagar por isso… e pelos DVD’s
...
>sábado de manhã
>estou em minha cama olhando para o teto
>somos 7 bilhões
>em um universo de uma vastidão… do caralho
>que existe há… muito tempo
>muito tempo mesmo
>e que provavelmente vai existir por mais tempo ainda
>eu não sou nada
>eu morrerei e serei esquecido por todos
>cairei no limbo do universo
>as pessoas que me amam vão superar, e seguir em frente
>e quando elas morrerem, não terá sobrado nada de mim nesse mundo
>nem mesmo as lembranças, pois não tem ninguém mais vivo que se lembre de mim
>ah, a propósito: bom-dia
>niilismo existencial, sabe como é
>enfim
>eu tinha que encontrar um exemplar de 1984
>e falar com meu avô sobre a ladra
>minha cabeça doía só de me lembrar dela
>finalmente criei ânimo para levantar
>antes mesmo de tomar café fui falar com meu avô
>- vô, temos um problema lá na locadora.
>- o que aconteceu? Algo deu errado?
>- não, não, não é isso. Bem, é que… tem um cadastro lá, de uma pessoa, e ela tem 13 filmes que pegou há muito tempo, e ainda não devolveu. E ela p…
>antes de terminar, lembrei que não podia falar que ela pegou mais 3, pois eu tinha acobertado isso
>- e ela… ela não aparece pra devolver, sabe?
>- qual o nome do cadastro?
>- Ágata Vila-Flor.
>meu avô riu
>- ah, não se preocupe com isso!
>- quê? M-mas, por que?
>- apenas deixe isso pra lá, não vale seu tempo. Vá se divertir garoto, hoje é sábado!
>aquilo foi estranho pra caralho
>eu tinha que fazer algo a respeito
>ela tinha que pagar pelas merdas que fez
>mas agora não tinha nada que eu pudesse fazer, pelo visto
>o melhor a ser feito era eu tratar de providenciar o livro
>tinham outras 2 bibliotecas na minha cidade, todas bem longe
>tudo bem que eu fui parar fora da cidade no dia anterior, mas na verdade esse era um bom motivo para eu não fazer nada parecido hoje
>estava extremamente cansado
>resolvi que ia jogar tudo pro alto
>passei a manhã inteira assistindo uns desenhos que estavam passando na televisão
>depois passaram alguns programas chatos até que eu encontrei um daqueles filmes oitentistas de ação bem mal-dirigidos
>fiz isso até dar meio-dia
>almocei tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo
>foda-se a resenha daquele livro idiota
>foda-se os filmes que a ladra roubou
>depois do almoço fui para meu quarto novamente
>joguei video-game por horas à fio
>até que uma pedra caiu no chão do meu quarto
>só tinha uma explicação: alguém jogou ela na janela
>eu fui olhar na janela e uma pedra acertou meu olho
>puta que pariu
>era a ladra de filmes
>- Rapunzel, jogue suas lindas traças para mim! - ela disse, sempre com aquele tom de deboche dela
>- que porra cê tá fazendo aqui? Aliás, como você sabe onde eu moro?
>- você vai descer ou não?
>eu não respondi, apenas fechei as janelas
>de repente eu ouvi do meu quarto alguém batendo na porta da casa
>era ela de novo
>antes que eu pudesse gritar pro meu avô não atender, já era tarde demais
>- pois não? - meu avô perguntou, inocente
>- oi, eu sou uma amiga do seu neto, ele tá ai?
>- ah sim, claro, minha jovem! Pode ir entrando…
>puta que pariu… puta que pariu duas vezes
>- ele está enfonado naquele quarto dele, fique à vontade.
>- obrigado – ela respondeu com um sorriso gentil para ele
>que garota encantadora
>ou ao menos deve ter sido isso que meu avô pensou
>mas eu sei bem o que essa maluca é
>eu fiquei encostaod na porta, esperando ela subir as escadas
>- seu avô é um fofo – ela respondeu, e passou por mim entrando no quarto
>- sim, pode entrar! - eu falei ironicamente, e entrei no quarto também
>ela fechou a porta e jogou uma mochila na cama
>- o que você tá fazendo aqui? - eu perguntei
>ela se sentou na minha cama e olhou ao redor
>- seu quarto é legal, e você tem uma televisão nele
>- você não respondeu minha pergunta
>- isso é um PlayStation? - ela disse, ligando meu console
>- eu estou esperando uma resposta…
>- aposto que eu ganho de você em qualquer jogo! - ela disse
>- tá, legal, agora me diz o que você veio fazer aqui.
>ela foi até a mochila e pegou um livro
>era o livro que eu precisava, 1984
>ela me entregou o livro na mão
>- se você pensa que isso muda alguma coisa…
>eu fui interrompido
>mas dessa vez não por uma das maluquices dela
>quer dizer, de certa forma sim
>ela simplesmente me beijou
>foi um beijo bem longo, e eu demorei pra assimilar o que tava acontecendo
>quando finalmente pensei em reagir ela parou
>- tá legal, o que foi isso?
>- você beija mal – ela disse, pegando o joystick para jogar
>- mas eu nem tava… esquece! Você é maluca!
>ela riu, enquanto começou a jogar
>- Final Fantasy é coisa de frutinha, não tem nada melhor aí não?
>que idiota, FF é uma das melhores sagas de jogos que existem
>ela pegou meu disco de Metal Gear Solid
>- isso sim é um jogo bom!
>eu não sabia como mandá-la embora
>eu tinha esse direito, eu sei que sim
>mas era muito estranho, como falar “vai embora do meu quarto”?
>ainda mais pra uma garota
>uma garota que tinha acabado de me beijar
>decidi que simplesmente ia ver onde isso ia parar
>péssima ideia, 18:00h da noite e ela ainda não tinha ido embora
>- esse livro não é roubado, é? - eu perguntei, segurando-o
>- você não devia estar fazendo uma resenha dele?
>- não, eu faço amanhã.
>- não, você faz hoje. Amanhã vamos sair!
>- o quê? Como assim, você não me convidou pra lugar nenhum, e nem eu… droga, dá pra você me explicar o que tá acontecendo?
>- você é divertido, e eu quero sair com você, é isso. Não é óbvio?
>eu respirei fundo
>qual é o problema dessa garota?
>ela fugiu de mim por uma semana
>quase me matou afogado
>e agora entra no meu quarto, me beija, joga meus jogos e praticamente ordena que eu saia com ela?
>eu queria ter o auto-confiança dela
>nem sei o motivo, mas simplesmente fui fazer a resenha do livro
>as vezes eu parava pra observar ela jogando
>ela era muito boa nisso
>mas que porra! Há algumas horas atrás eu estava planejando fazer ela pagar uma multa caríssima e me vingar da raiva que ela me fez passar
>e agora ela tá sentada na minha cama
>eu bem que podia jogar ela da janela e dizer que foi um acidente
>na verdade eu deveria ter feito isso, como descobri mais tarde
>pois deu a hora do jantar e ela ainda estava lá
>- O jantar tá na mesa! - minha mãe gritou da sala de jantar
>eu nem tinha visto ela chegar
>- finalmente! Eu já tava com fome – ela disse, e largou o joystick de lado
>ela ia jantar na minha casa
>ela… ia… jantar… na… minha… casa
>puta que pariu pela terceira vez
>eu demorei pra sair do quarto
>conseguia ouvir ela falando com minha mãe
>ela tinha um carisma do caralho
>dava pra ver que as duas estavam se entendendo super bem
>tipo, nem foi como “quem é essa garota que eu nunca vi antes?”
>quando eu desci, as duas estavam conversando sobre Casablanca
>um filme muito bom inclusive, recomendo
>minha mãe também gostava de filmes antigos, por causa do meu avô
>meu pai passou o jantar inteiro me olhando com aquele jeito tipo “boa, filhão!”
>eles tavam pensando que ela era a minha namorada
>- então, há quanto tempo vocês se conhecem? - minha mãe perguntou
>- há umas duas semanas, e ele passou esse tempo todo tentando me conquistar – ela disse, me olhando de um jeito desafiador
>minha mãe riu, meu pai continuava minha olhando igual a um idiota
>meu avô agia como se nada estivesse acontecendo
>aquela seria uma longa noite
>e eu tentava achar um motivo pra não gritar “EU NÃO CONHEÇO ESSA DOIDA, ELA SIMPLESMENTE ENTROU NA MINHA VIDA E FEZ UM MONTE DE MALUQUICE E EU NÃO QUERO VER ELA NUNCA MAIS! ALGUÉM FAZ ALGUMA COISA!”
>se bem que de alguma forma, agora eu já não estava tão desesperado assim
>meu avô por algum motivo não se importa com os filmes
>e eu desconfio que ele já conheça ela
>e apesar de eu não estar muito afim de ver a cara dela, acho que a minha raiva passou
>eu consegui fazer a redação, no fim das contas
...
>por sorte, não aconteceu nenhum desastre no jantar
>apesar de que ela fez parecer que eu sou louco por ela para os meus pais
>depois disso, ela finalmente foi embora
>minha mãe foi fazer um daqueles comentários constrangedores
>- ela é muito bonita e inteligente, você deve gostar muito dela.
>eu ignorei, fui direto falar com meu avô em particular
>- certo, vô, me explica o que tá acontecendo… - eu falei
>- o quê? Como assim?
>- você conhece ela de algum lugar? Por que você não liga pro registro com os 13 filmes não devolvidos?
>- você se importa mesmo com isso?
>- bom, sim, né…
>ele riu
>- sabe, quando eu era jovem, eu ia para o cinema assistir as matinês de faroeste que tinham no domingo - disse meu avô, sentando-se em sua poltrona
>aquilo ia ser interessante, pelo visto
>- mas eu não tinha dinheiro para assistir essas matinês todo domingo. Então eu ia até o porteiro, dizia que meu pai estava lá e precisava falar com ele, entrava e assistia.
>- e ele caia nisso? – eu perguntei, achando aquilo ridículo
>- claro que não! - ele respondeu rindo – Mas ele não se importava, ele deixava por pura vontade.
>à essa altura, já tinha entendido onde ele queria chegar
>- quando essa garota apareceu pela primeira vez, há mais ou menos um mês, eu a vi trocando os adesivos dos filmes – ele continuou – eu ia chamar a atenção dela, mas então eu vi a cena mais bonita em todo o tempo que trabalhei ali: ela tinha pego um filme do Charles Chaplin. Uma garota de uns 16 anos, em pleno século XXI, pegando um filme de Chaplin!
>eu estava começando a me sentir mal por querer fazer ela pagar a multa
>- eu não sei qual a condição financeira dessa garota, mas acontece que ela ama cinema, e ela faz o que faz, por causa disso, exatamente como eu fazia. Eu sou o porteiro agora, entende? Eu sei o que ela faz, mas eu também sei o motivo. E isso faz com que eu não me importe.
>- então ela pode pegar filmes à vontade?
>- é, ela pode. Apenas faça parecer que você não sabe, isso é importante.
>- certo.
>- agora, como eu já tinha dito, vá se divertir. É sábado!
>meu avô sorriu e então se levantou, indo para o seu quarto
>- boa noite.
>- boa noite, vô.
>agora eu me sentia um idiota
>um completo idiota
>essa é provavelmente a garota mais incrível (e maluca) que eu já conheci
>a verdade é que eu não mereço ela
>eu não mereço a amizade dela
>eu não mereço a atenção que ela me dá
No dia seguinte…
>eu acordei um pouco mais tarde
>ai lembrei que tinha uma garota maluca que podia aparecer a qualquer momento pra sair comigo
>então não dediquei alguns minutos à refletir sobre minha insignificância dessa vez
>simplesmente levantei e fui me arrumar correndo
>quando desci para a sala pra tomar café, ela já estava lá
>- você demorou muito! - ela disse, chateada
>eu podia ter respondido de um jeito bem grosseiro, mas prometi a mim mesmo que ia tentar ser razoável com ela
>vai que ela age de um jeito menos doido se eu fizer isso
>talvez ela só faça isso porque sabe que me incomoda, então se eu fingir que não ligo, talvez ela pare
>eu ia tomar café, mas sei que ela não iria esperar, então simplesmente fui com fome
>afinal é isso que os idiotas fazem
>enfim
>ela pegou um ônibus e eu simplesmente a segui
>- pra onde a gente tá indo? - eu perguntei, quando me sentei ao lado dela
>ela deu de ombros
>- espera aí, você não sabe?
>- com certeza ele vai parar em algum lugar interessante uma hora ou outra… - ela me disse, como se fosse a coisa mais normal do mundo
>passamos um bom tempo no ônibus, até que passamos pelo museu de arte da cidade
>- é, aqui é um bom lugar! - ela disse, e se levantou
>eu me levantei também
>saltamos do ônibus e fomos para o tal museu
>a gente passou a tarde inteira olhando quadros
>alguns eram até legais
>ela parecia não ligar muito, como se só estivesse matando tempo
>desconfiei que ela estivesse esperando por algo
>já estava ficando tarde quando ela foi falar com um dos seguranças
>- onde é o banheiro aqui?
>o rapaz apontou a direção
>ela passou por mim e fez sinal para eu segui-la
>eu olhei pro segurança e ele não tinha reparado
>ela entrou no banheiro feminino e me puxou pelo braço
>- tá maluca? Eu não vou entrar no banheiro feminino.
>- relaxa, ninguém vem em banheiros de museus.
>finalmente ela conseguiu me puxar pra dentro do banheiro
>ficamos nós dois sozinhos lá
>- a gente vai…
>- o quê? – ela perguntou, sem entender direito
>é, pelo visto não
>simplesmente ficamos ali por um tempo
>- por que exatamente estamos aqui?
>- por que vamos transar.
>- n-nós o q…
>ela riu
>- eu tô bricando, a gente tá esperando o museu fechar.
>- mas por que?
>- porque vamos ficar aqui escondidos.
>- os seguranças ficam aqui mesmo depois de fechar, não?
>- eu não tinha pensado nisso… - ela confessou – mas acho que se a gente ficar aqui não tem problema, eu não vi nenhumA segurança.
>nisso ela tava certa
>quando finalmente deu o horário, pode ver quando começaram a desligar todas as luzes
>ela mesmo desligou a luz do banheiro
>pude ouvir quando um cara comentou com o outro
>- foi você que desligou a luz do banheiro feminino?
>- não.
>- deve ter sido o Cabeça.
>“cabeça” talvez tenha sido o apelido mais estranho que já ouvi
>mas por sorte, ficou por isso mesmo
>eu não conseguia ver mais ela, mas ela me puxou
>- certo, agora sim nós vamos transar – ela falou bem baixinho, no meu ouvido.
>dessa vez ela não parecia estar brincando
>eu tinha 16 anos, eu devia estar pronto pra isso
>mas qualquer pessoa se sente fora de órbita com ela
>ela toma a atitude muito rápido
>ela domina você
>eu não estava conseguindo agir como um alpha
>decidi que não ia me deixar intimidar
>se isso era algum tipo de teste, eu ia passar
>opa, opa, opa, amigo! Pode guardar esse seu pau de volta pra suas calças
>não, eu não vou narrar como foi
>esse não é um daqueles GT’s pornográficos
>nenhum desses romances de merda onde a “pitanguinha” morre de câncer ou algo do tipo
>nós transamos pra caralho no banheiro de um museu de arte
>isso já é o bastente para você
>enfim
>no dia seguinte tivemos que esperar o museu abrir para sairmos
>por algum milagre ninguém desconfiou de nada
>ela me acompanhou até a minha casa
>como se a mocinha fosse eu
>dessa vez ela não entrou
>- bem, eu tô atrasado pro colégio, obrigado! - eu disse
>- foi a sua primeira vez ontem?
>- o quê?
>- é, foi a sua primeira vez ontem…
>- a sua não?
>- sim, foi a minha primeira vez também. Mas é que… você transou pela primeira vez e tá chateado por causa do colégio?
>ela tinha razão
>eu devo parecer bem idiota pra ela
>- tem razão, desculpa por isso, é que…
>- é que você é um idiota! - ela disse, me interrompendo
>ela ficou séria de repente
>acho que eu magoei ela
>tinha sido a primeira vez dela
>era pra ser uma coisa especial, e eu com meu egoísmo falando de estar atrasado pro colégio
>fiz besteira, fiz besteira, fiz besteira
>- desculpa, eu não…
>de repente ela começou a rir
>- você tinha que ver a sua cara! - ela disse me dando um empurrão de leve – Até mais, “atrasado pro colégio”.
>eu não consegui falar nada
>puta que pariu
>eu sei que eu já perguntei isso
>mas qual o problema dela?
...
>durante as aulas eu só conseguia pensar nela
>aquela criatura tinha que ser estudada
>estudada por mim, de preferência
>acho que eu estava começando a gostar dela
>o que prova que talvez eu não seja tão diferente dela
>eu devo ser retardado também
>enfim
>passei a aula com a mente longe da sala
>e eu nem tava pensando em como eu vou morrer e ser esquecido nesse emaranhado de pessoas insignificantes que passaram pela Terra
>pela primeira vez eu não me importava com nada disso
>eu tinha algo melhor para pensar agora
>quando o alarme tocou, eu acho que nunca me senti tão feliz
>é tão bom saber que tem alguém esperando por você
>alguém que, assim como você, deve estar contando os minutos pra te ver
>Ágata talvez seja a melhor coisa que aconteceu comigo nos últimos anos
>assim que cheguei em casa, vi dois tênis femininos
>tênis? O que será que ela tava aprontando agora…
>subi as escadas e fui pro meu quarto
>ela tava lendo meu diário
>sim, um diário
>você não precisa falar o quanto isso é ridículo
>- você tem um diário, isso é fofo! - ela disse, enquanto lia
>- me devolve isso! - eu estendi a mão pra ela me entregar
>- o que é esse tal niilismo existencial?
>eu tomei o diário e guardei em uma gaveta do meu criado-mudo
>- me responde, o que é niilismo existencial?
>- não é nada, esquece isso. Você não devia mexer nas minhas coisas…
>finalmente parei pra observá-la
>ela tava usando roupa pra caminhada
>eu preferi nem perguntar nada
>à essa altura do campeonato já tinha desistido de entender ela
>- e então, vamos fazer alguma coisa hoje? - eu perguntei, interessado
>- eu só vim jogar! - ela disse, ligando meu PlayStation
>eu fiquei em pé, parado, a vendo jogar
>um pensamento passou pelo meu cérebro subitamente
>deu vontade de fazer algo bem louco
>algo que eu nunca imaginei que faria… com ela
>a ladra de filmes
>a garota que quase me matou afogado
>que quase arruinou meu trabalho de colégio
>que me fez passar vergonha na frente dos meus pais
>e que… transou comigo no banheiro de um museu de arte
>acho que essa coisa que estou sentindo agora
>é exatamente o que ela sente toda vez que faz alguma doidera
>agora eu entendo
>- Á-Ágata… - eu falei, gaguejando
>- que é? – ela perguntou distraída, enquanto jogava
>eu respirei fundo
>fechei o olho
>- você quer namorar comigo?
>um silêncio pairou
>eu não queria abrir os olhos pra não ver se ela estivesse rindo de mim ou algo do tipo
>até que eu cansei de esperar com todo aquele drama adolescente e olhei pra ela
>ela ainda tava jogando
>- Ágata, você me ouviu?
>- Fala.
>eu respirei fundo
>talvez essa nem tenha sido uma boa ideia
>ainda bem que ela não ouviu
>isso parece ter sido algum tipo de sinal
>também, onde eu tava com a cabeça?
>melhor simplesmente esquecer isso
>namorar com ela deve ser um caos completo
>sinceramente, não sei de onde tirei isso
>enfim
>ela continuou jogando, e eu continuei vendo ela jogar
>depois de um tempo, ela voltou a puxar assunto
>- então… o que é esse tal niilismo existencial?
>- esquece isso.
>- deve ser uma parada pesada. É tipo alguma crise de identidade?
>- esquece isso, okay?
>ela não respondeu
>acho que fui muito frio com ela
>- você é um depressivo chato pra caralho, sabia? - ela contra-atacou
>- tá bom, desculpa, mas não precisa falar assim!
>- não, é sério! Você tá sempre chateado, reclamando, e… e… criticando as coisas, fala sério! Sabe o que eu acho? Eu acho que você devia curtir mais a vida. Carpe Diem, sabe?
>- Carpe Diem… – eu retruquei, achando aquilo ridículo.
>- é sério, você quer terminar como o Neil de Sociedade dos Poetas Mortos? Porque é isso que vai acontecer, e ele nem era depressivo, ele só era frustrado…
>eu não respondi
>na verdade eu não tinha uma resposta
>apenas me calei e esperei que ela fizesse o mesmo… e ela fez
>mas logo depois ela se levantou
>- eu tô indo…
>- já?
>- se anima um pouco, quando você não estiver ocupado demais sendo o baixo-estima em pessoa, talvez a gente passe mais tempo junto!
>- que é isso…
>ela me deu
um abraço
e falou bem baixinho no meu ouvido
>- eu ouvi você me pedir em namoro…
>então foi embora
>e eu fiquei ali parecendo um idiota
Algum tempo depois…
>eu tava no ônibus escolar, voltando do colégio, quando a vi
>ela estava entrando em uma casa
>finalmente eu tinha descoberto onde aquela maluca morava
>já tinha se passado 3 dias desde a última vez que conversamos
>acho que ela realmente queria que eu simplesmente desse um jeito na minha depressão
>não me surpreendi que ela não saiba como isso funciona
>nem que na verdade ela só estava piorando as coisas
>afinal quando eu tô com ela, eu não tô deprimido, nem nada do tipo…
>eu posso até ser chato e tedioso, mas se isso é um problema, por que ela começou com tudo isso, afinal?
>ela já tinha percebido como eu era desde a vez que eu a encontrei na biblioteca
>no fundo, ela estava errada
>mas não adianta eu falar isso pra mim mesmo
>assim que cheguei em casa, almocei, me arrumei e fui para a casa onde eu tinha visto ela entrar
>bati na porta três vezes, e pra minha surpresa, quem atendeu foi meu professor de Física
>o meu professor preferido
>o professor que me explicou o que é niilismo existencial
>o professor que eu confiava e a única pessoa com quem eu conversava regularmente
>- você por aqui? - ele me perguntou, espantado
>Ágata apareceu na porta
>- entre! - ele disse – essa aqui é a minha filha, a Ágata.
...
>meu chão caiu
>Ágata era filha do meu professor de Física
>como assim?
>eu entrei na casa, mas ainda estava meio desnorteado
>- oi, eu sou a Ágata, prazer lhe conhecer! - ela disse, apertando minha mão
>que… porra… foi… essa?
>- p-prazer, eu sou o…
>- então, o que traz aqui? – disse ele, me interrompendo
>- eu vim falar com o senhor sobre algumas coisas…
>- ah, precisando de alguém com quem conversar, heim? Bem, acho que uma conversa não faz mal, aceita uma xícara de café, ou quem sabe de chá?
>- n-não, obrigado, eu tô bem.
>- certo… - ele disse, sentando-se no sofá junto comigo
>- então… eu andei lendo sobre o niilismo existencial, e eu queria saber: em algum momento, eu vou aprender algo sobre isso que me conforte sobre a morte?
>parece uma pergunta estúpida, e é
>mas lembrem-se que eu estava improvisando
>quanto eu bati nessa porta, eu não esperava encontrar meu professor
>- garoto, se você está em busca de conforto sobre a morte, acho que está procurando isso no lugar errado. Compre uma bíblia!
>- o q-quê?
>- uma bíblia, é claro! - ele continuou – onde nos é prometido um paraíso fantástico depois da morte, com ceias em uma cidade cheia de preciosidades… uma utopia esplêndida!
>- bem, eu sou ateu.
>- é, eu sei. E como um ateu, já deveria ter se acostumado com o fato de que um dia você vai morrer, e não tem nada a ser feito sobre isso, por enquanto.
>não pude deixar de perceber que Ágata estava prestando muita atenção na conversa
>- está na hora de você encarar a realidade, e se ela não lhe cai bem, pare de pensar nisso! - sugeriu meu professor
>- mas como?
>- se distraia com outras coisas… eu não sei, um hobbie talvez. Uma meta, um sonho, um objetivo, algo que te mova, que te deixe tão focado que você não tenha tempo pra pensar em coisas desagradáveis. Eu coleciono charutos, e sou professor, meu sonho é fazer uma descoberta científica.
>aquilo realmente fazia sentido
>sem dúvidas foi a minha conversa mais esclarecedora com ele
>mas Ágata parecia tão interessada quanto eu
>por um segundo até desconfiei que era isso que ela fazia
>todas essas loucuras eram pra suprir uma possível depressão
>muito improvável
>ou será que não?
>- Terra chamando! - brincou meu professor
>eu despertei dos meus devaneios
>- bem, obrigado, professor, muito obrigado mesmo! Eu… tenho que ir, até mais.
>- era só isso? Certo, então… se cuida, garoto.
>- obrigado… ah, e thcau, ÁGATA.
>com isso eu me despedi e fui embora
>passei o caminho inteiro de volta pra casa refletindo sobre o que o professor me disse
>mas também intrigado com Ágata
>ela sabia onde eu morava
>ela estava me esperando enquanto eu procurava por ela
>a sensação que eu tinha é que ela me conhecia muito antes de eu conhecê-la
>eu não sabia o que pensar
>mas sendo filha do meu professor, ela sabia muito mais sobre mim do que eu imaginava
>bem, eis uma distração boa: refletir sobre tudo isso
No dia seguinte…
>no colégio, mais uma vez eu estava distraído demais
>meu rendimento escolar caiu bastante desde que isso tudo começou
>mas sinceramente, eu não me importava nem um pouco
>porém, dessa vez teria aula de Física
>foi uma aula normal, exceto que dessa vez eu não esperei todos saírem pra ficar conversando com o professor
>graças àquele acontecimento de ontem, meu papo com ele estava em dia
>quando voltei do colégio, torci pra que ela estivesse na minha casa
>e por sorte… ela estava
>Ágata estava conversando com meu avô sobre cinema mudo
>a conversa acabou assim que eu cheguei
>- bem, eu vou dar privacidade para os pombinhos… - brincou o meu avô.
>- tá tudo bem, vô, eu vou conversar com ela lá no quarto…
>ele riu, acho que entendeu esse “conversar” errado
>nós dois subimos
>- okay, tenho muita coisa pra perguntar e pouco tempo, tenho que ir pra locadora.
>- se você quer saber o motivo de eu fingir não te conhecer, é que não tem como eu te conhecer. Quando eu venho te ver, eu digo pro meu pai que estou indo visitar uma amiga. Ele é bem superprotetor…
>- ah, certo…
>- e se eu quero namorar com você? Sim, eu quero, mas com uma condição.
>- qual? - eu nem me dei ao trabalho de pensar no assunto
>- você vai fazer o máximo que puder pra se livrar de toda essa crise existencial e problemas com a morte. Vai fazer o que meu pai disse, vai tentar estipular metas e tudo mais…
>- eu vou, eu prometo que eu vou.
>- vamos fazer isso juntos. - ela me disse, e então me abraçou
>nos beijamos, e aquele beijo consolidou nossa relação
>a relação instável e caótica de um depressivo e uma inconsequente
>talvez tenha sido assim que o Big-Bang aconteceu
>enfim, galera
>não se preocupe, essa história tá longe de terminar
>mas agora teremos um longo salto de tempo
>mas antes um breve resumo do que aconteceu durante esse intervalo de tempo
>eu me apeguei muito à Ágata
>ela passou a ficar comigo na locadora
>e ela tomou coragem pra enfrentar o pai e contou toda a verdade
>a princípio meu professor se afastou um pouco de mim
>mas aos poucos ele fez exatamente o que pedia para que eu fizesse: se conformar com o que não podia mudar
>nós nos reaproximamos
>e digamos que ele é o melhor sogro do mundo
>sobre eu e Ágata: ela continuou sendo a caixinha de surpresas que sempre foi
>nosso relacionamento nunca caiu em uma rotina
>e acredito que foi isso que o manteve firme
>ela não me aguentaria se não acontecesse pelo menos uma coisa de incrível em nossos dias
>mas nem tudo são flores
>a verdade é que lidar com depressão não é tão simples assim
>quando eu estava com ela, esse tipo de pensamento nem ousava dar as caras
>mas sem ela a história era outra
>era como se ela fosse meu antidepressivo
>e sobre as metas e objetivos: eu não conseguia pensar em nada
>bem, foi isso o que aconteceu demais
>ao menos deu tudo certo
2 anos depois…
>isso mesmo, 2 anos depois
>eu continuo depressivo? Sim
>ela continua louca? Também
>meu sogro ainda é super legal? Com certeza
>mas a boa e velha locadora já não faz tanto sucesso
>a pirataria, infelizmente, é muito mais viável para as pessoas
>e eu não as culpo por isso
>mas meu avô não estava disposto a embarcar nesse ramo
>então seu sonho de viver apenas compartilhando seu amor pelo cinema com outras pessoas não sobreviveu à era da pirataria
>por outro lado, ele já não estava doente como antes
>ela tinha sérios problemas de saúde, por isso eu passei a tomar conta da locadora
>mas agora ele estava pronto pra outra
>porém nada disso foi necessário, pois meus pais passaram a sustentar ele
>ele tinha tudo o que precisava, sem necessidade de esforço
>e podia usar seu tempo livre pra cuidar de sua saúde
>nem tudo são flores, mas também nem tudo é 100% ruim
>enfim
>como todos os relacionamentos, o meu tinha altos e baixos
>e nesse momento, eu estava passando por um desses “baixos”
>para acabar com isso de uma vez por todas, eu finalmente resolvi ter uma dessas conversas de casal que todos nós amamos, não é mesmo?
>aproveitei um dia em que ela foi dormir lá em casa
>parece que não teria sexo dessa vez
>e sim muito diálogo seguido de gelo
>ninguém falou que era pra ser fácil
>- afinal, o que tá acontecendo? - perguntei, quando estávamos na cama
>- como assim?
>- ah, sério? A gente vai jogar esse joguinho? Você tá diferente, não te vejo assim desde que seu cachorro morreu
>ela me olhou séria
>- foi mal por te lembrar disso
>- cala a boca! - ela me disse e começou a arrancar a roupa
>é, eu devia ficar feliz
>ela só queria sexo
>mas, nunca pensei que diria isso: não era a hora
>eu segurei os braços dela
>- Ágata, é sério, você tá diferente. O que tá rolando?
>- vai por mim, você quer fazer sexo.
>- não, eu não quero, eu quero entender o que…
>- não, você não sabe, mas a melhor coisa que você pode fazer nesse exato momento é transar comigo.
>- mas…
>ela voltou a tirar a roupa e… é, isso mesmo
>sem conversas, sem esclarecimento
>quer saber? Do que eu tô reclamando, afinal?
>pois é, tivemos uma longa noite de sexo e depois fomos dormir
>quando eu acordei ela não tava mais
>mas ela deixou um bilhete
>eu peguei para ler
>basicamente, ele dizia: sinto muito por isso, mas eu estou indo para um lugar onde você dificilmente me encontraria. Você sabe como eu sou, e acho que estávamos começando a cair na rotina, e isso eu não posso aceitar. Estou partindo em busca de coisas novas, talvez eu volte, mas não vou exigir que espere por mim, seria pedir demais.
>porra Ágata!
>hoje não, eu tô cansado
>não é um bom dia pra uma crise de casal
>okay, hora de resolvermos esse draminha
>peguei o carro do meu pai emprestado e fui falar com meu sogro
>vi o carro dele chegando
>ele saiu do carro e me olhou espantado
>- não acha que chegou tarde demais?
>- tarde demais pra quê? - eu perguntei
>- que diabos! Ágata me falou que você era ruim em entender as coisas, mas isso é bem pior… você é um lesado.
>- O QUE TÁ ACONTECENDO, AFINAL?
>- eu acabei de levar a sua namorada no aeroporto.
>- como é que é?
>- Por Newton! O que você sabe, afinal?
>- ela só me deixou esse bilhete…
>eu entreguei para ele
>- é, pelo visto ela não te contou muito… - ele disse guardando o bilhete
>- essa ida ao aeroporto, ela vai visitar algum parente de um estado distante?
>- “estado distante”? Ela foi pra Alemanha!
...
>uma semana depois do ocorrido
>dia do meu aniversário
>tinha acordado cedo, mas ainda não tinha me levantado da cama
>mas dessa vez eu não parei para refletir sobre minha inexistência
>eu já tinha deixado de fazer isso há muito tempo
>eu estava pensando na Ágata
>no que ela fez
>eu vivo perguntando isso, mas lá vai…
>qual o problema dela?
>2 anos e eu ainda não sabia responder
>de todas as loucuras que ela fez, essa é inexplicável
>ele já roubou meu avô
>quase destruiu meu trabalho escolar
>quase me matou afogado
>transou comigo no banheiro de um museu de arte
>mas eu acho que você se lembra de tudo isso
>a questão é: até onde ela pode ir?
>até onde chega a loucura dela?
>ela ao menos podia ter esperado pra comemorar meu aniversário
>mas isso não importa agora
>não que não importe, você sabe
>mas hoje é meu aniversário
>eu tenho que dar meu máximo pra não parecer um americano na época da Grande Depressão pra minha família
>desci pra tomar café e ninguém me deu feliz aniversário
>e não tinha nenhum parente meu exceto por maus pais e meu avô
>o que significa que eles vão fazer uma festa surpresa
>ou seja, eu tenho a manhã e a tarde inteira pra sair
>e claro, a primeira parada seria a casa do meu sogro
>assim que cheguei, ele já me recebeu com um presente
>- feliz aniversário! - ele me disse, me abraçando
>- valeu… - eu disse, já tentando abrir a embalagem
>- não, não abra agora. - ele disse, e me convidou pra sentar
>fiquei curioso
>era uma caixinha bem pequena e fina, não caberia quase nada ali
>eu balancei e não fazia barulho
>ele voltou com biscoitos e café
>- não, obrigado, eu já tomei café.
>ele deu de ombros e colocou tudo na mesa de centro
>- o senhor já sabia que eu viria?
>- é, eu imaginei que sim… você precisa conversar comigo, afinal.
>- preciso?
>- não?
>- é, tem razão… - eu confessei
>- e então, o que vai ser hoje? Acha que aniversários são entediantes e insignificantes?
>- em parte sim, mas não é sobre isso. - resolvi me render e peguei um dos biscoitos.
>-tô ouvindo… - ele disse, depois de beber mais um pouco do café.
>resolvi pegar minha xícara de café também
>-é sobre a Ágata.
>nesse momento ele parou de beber e olhou pra mim
>-eu, eu não sei o que fazer, eu não sei o que esperar, sabe? Tipo, ninguém é treinado pra isso! Algumas mulheres terminam com você, outras te traem, outras te irritam, mas… ela foi pra Alemanha!
>-é, ela é bem excêntrica.
>eu o observei
>ele não parecia se importar muito
>-o senhor não parece estar incomodado com isso.
>ele bebeu mais um pouco do café
>-ela fez a escolha dela, eu não posso controlar tudo. Ela escolheu o que queria, tá na hora de você fazer isso também…
>-como assim?
>-tá brincando? Você não tem controle nenhum da sua própria vida, qual foi a última vez que fez algo inesperado… sem influência da Ágata?
>aquilo fazia sentido
>eu sempre vivi uma rotina bem medíocre
>-hoje é seu aniversário de 18 anos, por que você não faz algo que não podia fazer antes, pra variar?
>-não consegui pensar em nada assim, eu já dirijo, sabe… acho que isso é tudo. Ultimamente só tenho pensado nela…
>-você gosta muito dela, não é? - ele perguntou, sorrindo
>-tá brincando? Ela é a pessoa que eu mais amo, o sentido da minha vida, o…
>-espera aí, o que você disse? - ele perguntou, se posicionando melhor na cadeira como se quisesse prestar mais atenção
>-que eu… gosto dela?
>-não, não, você disse que ela era… ?
>eu não respondi
>senti medo de ter falado algo de errado
>ele tava me olhando estranho
>-vamos lá! Você disse que ela era?
>-a pessoa que eu mais amo…
>-e… ?
>-o… o sentido… da minha vida?
>-isso é verdade?
>-bom… sim.
>-então o que você tá fazendo a 11 mil quilômetros da Alemanha?
>touché
>eu não tinha uma resposta convincente
>-bem, você espera que eu vá pra Alemanha? Eu não esse dinheiro, e nem sei falar alemão, e… droga, como diabos eu iria pra Alemanha? Isso é loucura.
>-eu sei.
>-então é isso?
>-isso o quê?
>-isso é tudo?
>-bem, é o meu melhor: se você liga tanto pra ela, corra atrás dela.
>-ela pode estar em qualquer lugar.
>-em qualquer lugar DA ALEMANHA.
>-a Alemanha é bem pequena, você devia ver. Você coloca um pé na frente de outro e já viajou pra uma cidade vizinha.
>-ainda assim, seria difícil encontra-la.
>-ninguém falou que seria fácil.
>nisso ele tinha razão
>-certo, então…
>-quer mais biscoitos? - ele perguntou, se levantando pra pegar a bandeja
>-não, obrigado, eu tenho que ir.
>-boa sorte, então! - ele disse, levando a bandeja pra cozinha
>-obrigado.
>depois disso, fui embora
>fui direto pro litoral
>onde ela quase me matou afogado há dois anos atrás
>lá, fiquei observando o mar batendo nas pedras
>as pedras onde ela lia 1984
>eu nunca cheguei a falar o que achei do livro pra vocês
>eu achei o livro genial
>mas isso não importa muito agora
>enquanto olhava para aquela paisagem, as coisas que meu sogro falaram ecoavam na minha mente
>eu fiquei ali durante toda a manhã
>voltei pra casa afim de almoçar
>ainda nenhum parente meu
>-você demorou, onde estava? O almoço já tá pronto há um tempo, deixa eu esquentar. - disse minha mãe, voltando pra cozinha
>eu fui falar com meu avô
>-e então, como você tá? - eu perguntei
>-me diz você… - ele respondeu, sorrindo
>-bem, eu podia estar melhor.
>-ainda pensando nela, não é?
>eu hesitei por um momento
>mas eu devia perguntar isso
>a opinião do meu avô tinha muito mais importância pra mim hoje
>desde aquela conversa sobre matinês de faroeste e DVD’s roubados
>-o senhor acha que eu devia ir atrás dela?
>-eu não posso decidir por você, é sua responsabilidade.
>-eu sei, eu sei, mas… se fosse o senhor, o que faria?
>-à essa altura? Acho que já estaria lá na Polônia.
>-Alemanha.
>-é, dá no mesmo.
>por que todo mundo acha que eu deveria fazer a maior loucura da minha vida?
>NINGUÉM vai falar que isso não é uma boa ideia?
>o dia passou rápido
>eu saí mais uma vez, fiquei andando pela cidade
>quando voltei, para a minha “surpresa” tinha uma festa de aniversário me esperando
>tentei ser legal com todos, eles não tinham culpa de nada
>...
>mas não posso dizer que não fiquei aliviado quando tudo aquilo acabou
>um monte de gente que eu só vejo umas 3 vezes por ano agindo como se eu fosse a pessoa
mais querida da família
>ao menos ganhei presentes
>muitos presentes
>mas só tinha curiosidade pelo presente que o meu professor me deu
>já era meia-noite
>eu estava na minha cama, olhando para o teto
>quando finalmente resolvi abrir o presente
>eu sentia que seria algo importante
>ele não me daria um presente qualquer
>se eu o conheço bem, aquilo era um livro de filosofia
>já estava imaginando alguma coisa do Nietzsche
>acho que é assim que se escreve
>mas quando abri, minha maior surpresa
>ISSO sim era uma surpresa
>acho que nunca me surpreendi tanto na minha vida
>uma pilha de euros e uma passagem para Berlim
>no dia seguinte, eu acordei cedo
>queria deixar tudo pronto
>eu tinha que pegar meu vôo às 16:00h
>sim, ele me deu uma passagem para o dia seguinte
>por que eu não estou surpreso?
>enfim
>passei a manhã inteira arrumando as minhas coisas
>não sei quanto tempo passaria lá
>peguei todas as minhas roupas
>coisas que eu ia precisar se eu demorasse lá, etc.
>quando deu 12:00h, não queria almoçar, mas meu avô me disse que eu ia precisar
>nunca pensei que odiaria ter que comer uma lasanha
14:57
>- bem, hora de irmos! - disse meu avô
>- pensei que minha mãe iria
>- seus pais estão trabalhando, eles não têm tempo pra gente e a gente não tem tempo pra
eles.
>- tá bem cedo, vai dar 15:00h agora.
>- é, mas aeroportos são…
>meu avô parou por um momento
>- aeroportos são demorados… - a voz dele saiu estranha
>- vô, o senhor tá bem?
>- tô, eu só senti uma dorzinha no peito. Coisa de velhos!
>nós dois entramos no carro
>bem, eu não tinha carteira de motorista
>ir até o aeroporto seria arriscado, mas eu preciso
>eu já tinha combinado com meu avô que ele iria comigo
>fomos o caminho inteiro ouvindo folk
>- okay, hora de testarmos seu inglês… - ele disse, tirando um dicionário do porta-luvas
>- não precisa, vô…
>- você sabe alemão?
>- não.
>- foi o que eu pensei.
>- por que o senhor tem um dicionário no porta-luvas? - eu perguntei, dividindo a atenção
entre ele o volante
>- esse carro já foi um táxi, as vezes tinham turistas.
>fazia sentido
>mas eu não sabia que ele era taxista
>enfim
>ficamos ensaiando perguntas e respostas em inglês
>- how you doin’? - ele me perguntou
>por que cê está fazendo isso?
>- isso o quê?
>- esse sotaque alemão
>- vai ser difícil você entender um alemão falando inglês, eu acho
>- para com isso! - eu pedi, rindo
>os minutos depois disso foram tranquilos
>continuamos ensaiando, mas dessa vez sem o sotaque alemão
>de repente… blitz
>um dos policiais me pararam
>ele olhou bem pra minha cara
>de repente, bateu o desespero
>eu não conseguia disfarçar o meu nervoso
>o policial tava me olhando como se estivesse pensando “que porra tá acontecendo aqui?”
>- algum problema, senhor policial? - eu consegui falar, depois de um tempo
>- ele continuou me encarando
>- moleque, quantos anos você tem?
>- d-dezoito, senhor.
>eu me apressei e mostrei minha carteira de identidade pra ele
>- documentação, por favor.
>eu apontei pra carteira de identidade
>ele respirou fundo
>- A CARTEIRA DE MOTORISTA, GAROTO!
>obviamente, eu não estava com a carteira de motorista
>afinal eu não tinha uma
>então tive que improvisar
>- um momento, seu policial…
>fiquei procurando pelo carro
>- é, parece que não tá aqui.
>ele entortou a boca
>- sai do carro, garoto.
>- m-mas…
>- sai… do… carro.
>meu avô se apressou em puxar a carteira e puxou 50 reais
>- isso resolve o problema? - perguntou meu avô, com a mão trêmula
>o policial ficou encarando meu avô
>EU fiquei encarando o meu avô
>puta que pariu
>a gente ia ser preso por suborno
>o policial respirou fundo
>mas para a minha surpresa, ele puxou o dinheiro
>- vai longo, garoto.
>eu acelerei e saí dali o mais rápido que pude
>essa foi por pouco
>eu comecei a rir
>mas não era um riso feliz, era um misto de nervoso com alívio
>meu avô começou a rir também
>a gente tava rindo histericamente no carro
>até que ele começou a tossir
>eu desviei o olhar da pista por um momento pra olhar ele
>ele parecia estar mal
>- o senhor tá bem?
>ele não respondeu, continuou tossindo
>puta que pariu outra vez
>até que ele finalmente respirou fundo
>- é, eu tô bem.
>dois sustos em menos de 2 minutos, aquilo era demais pra mim
>- você tossiu por tipo, um tempão.
>- foi a empolgação… ai!
>ele levou a mão ao peito
>- vô?
>ele fez uma expressão de dor
>era melhor isso ser uma brincadeira
>- vô, para com isso, é sério!
>ele ficou com a cabeça baixa, apertando a mão contra o peito
>- vô… VÔ!
>eu não vi alternativa
>fui pra contra-mão e girei o carro na direção contrário
>iríamos para o hospital
15:34
>eu estava na sala de espera do hospital
>- com licença, onde tem um telefone aqui? - perguntei para uma enfermeira
>ela apontou pro corredor
>- obrigado!
>eu liguei e avisai para os meus pais que o meu avô estava no hospital
>quando voltei para a minha cadeira uma médica veio falar comigo
>- o seu avô vai ficar bem.
>senti um alívio enorme… pela terceira vez hoje
>- eu posso falar com ele? - perguntei
>- eu aconselho você a não fazer isso, ele precisa de repouso e…
>“aconselho” não signfica “não permito”, logo eu posso
>a ignorei completamente e entrei na sala
>ela não me seguiu
>lá estava meu avô, no leito
>- essa foi por pouco, heim? - ele brincou
>- eu pensei que você ia… - nesse momento eu comecei a lacrimejar
>desisti de falar e fui abraçar ele
>foi um abraço longo
>- desculpa por estragar sua viagem.
>- o senhor não tem culpa.
>enxuguei minhas lágrimas
>- ei, não fique assim, ainda dá tempo.
>- tá brincando?
>- enquanto não for 16:00h, você ainda tem uma chance
>- eu não vou deixar o senhor aqui…
>- já avisou aos seus pais?
>- sim, mas…
>- então vá, garoto. Eu vou ficar bem.
>eu não precisei pensar duas vezes
>sai correndo daquele lugar na mesma hora
>mas tinha um problema
>eu não ia conseguir passar por outra blitz
>fiquei dentro do carro, sem ligá-lo, apenas pensando no que fazer
>se ao menos meu sogro estivesse aqui
>exato
>meu sogro
>eu sou um gênio, não sou?
>não responda
>é, você não pode
>enfim
>fui para a casa dele o mais rápido que pude
>quase bati o carro 3 vezes
>estacionei em cima do jardim dele
>assim que ele viu o carro saiu da casa
>- que porra você tá fazendo aqui, o vôo são às 16:00h! Você tem um bom motivo pra estar
aqui?
>- meu avô teve um infarto, eu tive que levá-lo para o hospital!
>- é, isso é um bom motivo.
>- precisamos ir para o aeroporto agora, eu não posso, não tenho carteira de motorista e
passei por uma blitz por pouco e…
>- não dá mais tempo…
>- mas…
>- não dá. Esquece.
>eu respirei fundo e me sentei ali, na grama do jardim dele
>ele se sentou ao meu lado
>- desculpa por isso, essa passagem deve ter sido cara.
>não foi culpa sua
>ele me deu um tapa de leve nas minhas costas
>- eu tenho muito azar…
>- ah, para de drama! Eu compro outra!
>- o senhor não prec…
>- cala a boca e vem, garoto, nós precisamos ir para o aeroporto
...
>nós fomos para o aeroporto no carro dele
>ele comprou uma passagem para mim novamente
>para hoje mesmo, às 18:00h
>não tem muito o que falar sobre isso
>não aconteceu nada relevante
>ele me deixou na sala de embarque
>- boa sorte na sua procura. - ele me disse
>- o senhor tem alguma ideia de onde ela pode estar?
>- tudo o que eu sei é que ele tá em Berlim. Você conhece ela, existem alguns lugares onde
provavelmente ela pode estar…
>- é, faz sentido…
>até que me surgiu uma pergunta
>- por que a Alemanha? - eu perguntei pra ele.
>- isso você vai ter que perguntar pra ela.
>- se eu encontra-la, vou perguntar...
>- QUANDO você encontra-la, vai perguntar. - ele corrigiu
>nos despedimos e então chegou a hora de partir
>quando meu vôo foi anunciado, eu queria que meu avô estivesse comigo
>era a minha primeira viagem de avião
>mas eu não estava tão empolgado com isso
>estava mais empolgado em chegar na Alemanha
>se eu estivesse só a passeio, aquele seria um dia incrível
>viajar de avião pela primeira vez, e melhor: para o exterior
>acho que encontrar Ágata era muito mais importante
>a viagem durou umas 13 horas
>poderia ter durado menos, mas o vôo teve conexão com Frankfurt antes de parar em Berlim
(vôos com conexão são mais baratos)
>impressionante como o aeroporto de lá era bem mais bonito
>mas nada disso importa
>eu sei exatamente o que você quer saber
>pois bem, lá vamos nós
>o primeiro dia foi puro descanso
>eu me hospedei em um hotel
>e fiquei assistindo televisão na cama
>no dia seguinte, era hora de começar a agir
>falei com a recepcionista do hotel
>perguntei sobre lugares interessantes para ir na cidade
>com preferência a lugares que tem a ver com cinema
>ela me passou uma lista de todos os cinemas e onde eles ficavam
>mas algo que ela me disse, me fez ter a certeza que eu encontraria Ágata
>haveria um Festival de Cinema lá, o BerlinAle
>eu já tinha ouvido falar antes
>seria dentro de uma semana
>ela me aconselhou a comprar logo o ingresso pro filme que eu queria, porque eles iriam se esgotar logo
>eu fui no mesmo dia
>o ingresso para cada filme custava 11 euros
>eu decidi que escolheria apenas um filme
>Ágata com certeza assistiria mais de um, o pai dela tinha dinheiro, ela com certeza veio aqui
com bastante grana
>então por mais que eu só escolhesse um, tinha uma enorme chance de eu encontra-la lá
>resolvi apostar no filme que ia abrir o festival
>com certeza ela estaria nele
>o nome do filme era Snow Cake
>era um romance britânico/canadense, não quis saber muito sobre ele
>eu descobriria assistindo
>com o ingresso comprado, agora só me restava esperar
>decidi que iria curtir Berlim
>conhecer o local
>afinal era a minha primeira viagem internacional
Na noite seguinte…
>soube de um clube próximo
>onde tocava folk
>e eu como amante de folk, decidi ir
>tinha um cara cantando músicas do Bob Dylan
>me senti meio deslocado, sozinho naquela mesa
>gostaria que a Ágata estivesse ali
>estava tocando a música preferida dela, “Mr. Tambourine Man”
>eu não conseguia ficar triste
>eu estava empolgado demais pra isso
>mas naquele momento eu só me sentia um peixe fora d’água
>eu não era alemão
>é mais fácil quando você tá acompanhado, sabe?
>enfim
>fiquei distraído pensando em como era uma bela coincidência estar tocando a música preferida
>até que o cantor falou algo (em inglês, claro) que me intrigou
>- muito bem, gostaria de agradecer pela sugestão, essa música é realmente maravilhosa e
uma das melhores do Dylan. Agora eu vou cantar uma música muito especial para mim, do
Joni Mitchell, se chama ‘Big Yellow Taxi’
>alguém tinha sugerido aquela música
>eu automaticamente me levantei da mesa e olhei ao redor
>algumas pessoas ficaram olhando para mim
>até que alguém que estava me encarando parou de me olhar subitamente assim que eu me
virei para ela
>cabelos loiros, a única pessoa que também estava sozinha
>só podia ser ela
>ela tinha recomendado a música
>eu fui em sua direção
>ela deu uma breve olhada, e percebeu
>logo depois se levantou e foi embora
>eu fui atrás dela
>ela começou a acelerar o passo
>eu acelerei o passo também
>- Ágata! - eu gritei
>ela começou a correr
>eu tive que correr também
>ela atravessou a rua correndo
>eu fiz o mesmo e quase fui atropelado
>de repente ela passou por um beco escuro
>eu continuei seguindo-a
>fomos parar em uma rua que parecia uma grande feira
>tinham várias barracas e várias pessoas
>eu acabei a perdendo de vista na multidão
>decidi apenas andar na direção que tinha visto ela
>fui me batendo entre várias pessoas
>até que finalmente a alcancei
>eu a peguei pelo braço
>ela parou e se virou pra mim
>- você demorou de me achar! - ela disse sorrindo e então piscou o olho
>aquela frase, ela já tinha me dito
>no dia da biblioteca
>há 2 anos atrás
>aquilo me derrubou
>eu não sei o motivo, mas isso mexeu comigo
>eu fiquei fraco, minha mão trêmula
>eu acabei soltando ela
>- aproveite Berlim, amor.
>ela me deu um beijo, então deu as costas e foi embora
>eu demorei pra assimilar as coisas
>eu queria encontrá-la
>mas eu não esperava que isso realmente acontecesse
>eu estava paralisado
>quando finalmente consegui voltar a reagir
>ela já estava bem longe
>e assim eu a perdi mais uma vez
PARTE 9:
>terceiro dia
>eu estava em um misto de emoções
>me sentia triste
>decepcionado comigo mesmo por não conseguir segura-la
>puto pelo que ela faz
>acho que não pergunto isso já há algum tempo
>QUAL O PROBLEMA DELA?
>agora eu sabia que ele esperava por mim
>ou ao menos sabia que eu iria procurar por ela
>isso, parece que ela sabia
>mas como?
>por que diabos ela acha que eu viajaria pra Alemanha por causa dela?
>e o fato de que ela fugiu de mim me deixou perturbado
>pensei até mesmo em desistir
>pra quê procurar por alguém que vai fugir?
>talvez eu devesse amarrar ela
>é uma boa ideia
>enfim
>aquilo também abriu meus olhos
>talvez eu não precisasse esperar até o BerlinAle
>ela estava em um clube próximo do hotel
>o que significa que talvez ela morasse próximo dali
>quem sabe estivesse até hospedada em um hotel vizinho
>OU ATÉ MESMO O MEU HOTEL
>as possibilidades eram enormes
>e eu não sabia por onde começaram
>mas prometi para mim mesmo que ia viver Berlim
>se eu tivesse que reencontrá-la, seria no BerlinAle
>fui sair, conhecer a cidade
>fiz isso durante o dia todo
>quarto dia
>voltei ao clube de folk
>o mesmo cantor
>fiquei no bar do clube
>bebi um monte de coisa com nome alemão
>uma mulher se sentou do meu lado
>ela falou algo em alemão
>- não falo alemão – respondi, em inglês
>- um estrangeiro?
>- é.
>- de onde você é, bonitão?
>- Brasil.
>- ouvi dizer que os brasileiros tem um…
>- nós não vamos transar
>ela se levantou sem me dar nem mais uma palavra
>o barmen riu
>- dia difícil, amigo? - ele perguntou
>eu fiz que sim com a cabeça
>ele não falou mais nada
>acho que ele não sabia falar inglês muito bem
>deve ter decidido não arriscar
>melhor assim
>não tava muito afim de conversa
>quarto dia
>eu fui em alguns museus
>até esperei acabar encontrando ela em um deles
>mas o mais próximo disso que cheguei foi confundir ela com todas as loiras que apareciam na
minha frente
>e acredite: tem MUITAS loiras na Alemanha
>quinto dia
>faltavam 3 dias pro festival
>eu resolvi ir para o clube outra vez
>no caminho, algo interessante aconteceu
>eu ouvi uma conversa em português
>eram um casal
>eu dei a volta para falar com eles
>- dá licença, vocês são brasileiros?
>- a gente é de Portugal! - disse a mulher, bem simpática
>- puxa, ouvir uma palavra que não tenha um “s”, um “w” e um “h” é revigorante!
>nós três rimos
>- és novo aqui? - o homem perguntou
>- eu tô aqui há 5 dias, totalmente perdido.
>- estávamos indo para o Keiser. - perguntou o homem
>- é um clube próximo daqui. - explicou a mulher
>- eu tava indo pra lá também! - contei
>- a propósito, meu nome é Manuel! - disse o homem
>- e o meu é Isabela. - ela acrescentou
>um português chamado Manuel
>nossa, por essa eu não esperava
>bem original
>enfim
>eu me apresentei e nós fomos para o clube
>conversamos bastente
>eu falei sobre o festival
>mas não falei sobre a Ágata pra eles
>não queria falar sobre isso
>- a gente veio pra cá exatamente por causa do BerlinAle! - disse Emanuel
>- mas vou aproveitar para apresentar Berlim pra ele… - explicou ela
>- você já esteve aqui antes? - eu perguntei
>- sim, eu já morei aqui. Estou sendo a guia dele. - ela comentou, rindo
>- que legal…
>depois de muita conversa, eu comecei a sentir sono de decidi ir embora
>- bem, eu vou indo.
>- mas já? - lamentou Manuel
>- é, eu preciso ir.
>- onde estás hospedado? - perguntou Isabela
>- no hotel mais próximo daqui.
>- ah, o Schwazer. Nós estamos lá também! - contou Manuel
>- nós vamos para uma ópera amanhã - contou Isabela – queres vir conosco?
>- claro, eu aceito!
>- então, nos encontramos na saída do Hotel às 19:00h? - perguntou Manuel
>- 19:00h, vou estar lá.
>e assim nos despedimos
>sexto dia
>passeei mais um pouco por Berlim
>até dar o horário que eu deveria me arrumar
>a ópera era uma releitura de Assim Falou Zaratustra
>eu não entendia de óperas e nem livros que não fossem de ficção científica
>mas conhecia essa
>pois o tema da peça baseada no livro Assim Falou Zaratustra era o mesmo de 2001: Uma
Odisséia no Espaço é esse
>o preço do ingresso foi bem salgado
>eu tinha que racionar meu dinheiro, eu tinha bem pouco
>e não fazia ideia de quanto tempo ficaria em Berlim
>enfim
>fomos para a sala e ficamos conversando
>até que as luzes se apagaram
>(você deveria ouvir o tema de 2001: Uma Odisséia no Espaço agora)
>as cortinas vermelhas se abriram
>canhões de luz apontaram para o palco
>uma melodia surgiu
>ela começa bem baixa
>e vai aumentando
>de repente eu não pude deixar de notar
>uma mulher inconfundível no palco
>sim, no palco
>Ágata estava no palco da ópera
PARTE 10:
>a voz dela era linda
>angelical
>eu não sabia que ela sabia cantar
>eu não acreditava no que eu tava vendo
>eu não entendia como tava acontecendo
>seria um delírio?
>eu estou tão obcecado que estou vendo ela em todas as partes?
>mas parecia tão real
>tinha que ser real
>ERA real
>lá estava ela, cantando
>com uma voz perfeita
>a mais bonita que eu já tinha ouvido
>a ópera foi muito interessante
>era legal ver o livro ganhar vida de um jeito tão expressivo
>mas nada disso importa
>no fim de tudo, todos aplaudiram de pé
>eu não
>eu não sabia como reagir
>mas de repente soube
>- eu preciso ir. - disse para o casal de portugueses
>sai correndo para falar com um assistente de palco
>o casal me seguiu, acho que estranharam o que eu fiz
>- eu posso falar com aquela atriz ali?
>ele não entendeu
>não entendia inglês
>o casal chegou
>- vocês sabem falar alemão? - perguntei pra eles
>- sim. - respondeu Isabele
>- pergunta pra ele se eu posso falar com aquela atriz ali.
>ela perguntou
>ele respondeu algo pra ela
>- ele disse que vai avisá-la
>isso acabavam com o meu plano
>lá se vai meu elemento surpresa
>com certeza ela iria embora assim que ele contasse que alguém queria falar com ela
>eu simplesmente desisti
>nem expliquei nada pro casal
>apenas fui embora
>os dias que se passaram foram normais
>mas não saia da minha cabeça
>como eu sempre a encontrava?
>e… que diabos ela tava fazendo em uma ópera?
>desde quando ela sabe cantar?
>mais e mais perguntas, nenhuma resposta
No dia do Festival…
>oitavo dia
>eu me arrumei e fui para o BerlinAle
>era o grande dia
>não tinha escapatória
>ela estaria lá com certeza
>cheguei em cima da hora
>por sorte me deixaram entrar
>quando o filme começou, eu só olhava ao redor
>quem liga pra Snow Cake?
>mas cansei de olhar ao redor
>havia vários pontos que eu não conseguia ver e que ela poderia estar
>eu não ia ficar andando feito um maluco pela sala
>resolvi assistir o filme
>até que ouvi uma discussão
>vinha de lá de trás
>eu olhei
>tinha uma mulher discutindo com o segurança
>a mulher tinha um crachá, ela deveria trabalhar lá
>engraçado, ela … não
>não
>puta que pariu
>não
>ela se parecia muito com Ágata
>de repente o homem a expulsou de lá
>eu fui atrás dela
>mesmo não tendo certeza que era ela
>ela passou pelo corredor andando em passos pesados
>parecia estar irritada
>eu corri para alcançá-la
>resolvi que iria gritar por ela
>eu queria surpreendê-la, mas foi mais forte que eu
>- Ágata!
>ela parou e se virou
>- você é bom nisso! - ela respondeu
>eu a segurei
>dessa vez a segurei bem forte
>mas forte do que deveria
>- Ágata, eu juro pra você… - eu disse, já com os olhos lacrimejando – se você fugir dessa vez,
eu não vou te procurar de novo.
>- eu preciso ir.
>- Ágata, eu falo sério…
>- eu realmente preciso ir.
>- se você realmente quer tanto que eu fique, me dê um motivo.
>- eu te amo.
>- eu também, idaí?
>- idaí? Qual é a porra do seu problema?
>- por que você acha que eu estou fazendo isso? Eu te amo mais do que você pode imaginar.
>- você é louca… - eu tava começando a sentir raiva daquilo tudo
>- você é um depressivo sem perspectiva de vida!
>essa doeu
>- eu sou a única coisa de boa que já aconteceu na sua vida.
>essa também
>- me diga uma coisa: quantas coisas incríveis você têm feito ultimamente?
>- você não vai me dizer que…
>- você tá na Alemanha! Algum dia já se imaginou fazendo isso?
>eu a soltei
>- você só foi em clubes folk, andou de avião pela primeira vez, foi em museus…
>- você me viu nos museus?
>- é claro que eu te vi nos museus, eu te vi em toda parte.
>eu recuei
>aquilo era demais pra mim
>que porra tava acontecendo?
>- você não entende? - ela perguntou com uma expressão de decepção – você foi em uma
ópera, você foi no BerlinAle! Você tá no corredor do maior festival de cinema da Alemanha.
Tudo isso por mim. POR MIM! Porque eu fui embora.
>- Ágata…
>- eu sou o sentido da sua vida. Procurar por mim é o sentido da sua vida.
>- Ágata… você é doente.
>- pare pra pensar, todo esse tempo. Se há 2 anos atrás você não tivesse me conhecido,
provavelmente você já teria se matado!
>- VOCÊ NÃO PRECISA FAZER NADA DISSO! - eu rosnei
>acho que ela se assustou um pouco, mas eu já não me importava
>- MEU AVÔ TEVE UM INFARTO, EU DEIXEI MEU AVÔ NO HOSPITAL POR CAUSA DE VOCÊ! EU
VIAJEI PRA OUTRO PAÍS POR CAUSA DE VOCÊ! TUDO ISSO POR CAUSA DE UM JOGUINHO? SÓ
PRA ADICIONAR UM SENTIDO À MINHA VIDA? NÃO TINHA UM JEITO MAIS FÁCIL DE FAZER
ISSO?
>- não.
>- É CLARO QUE TEM, PORRA! POR QUE A ALEMANHA? POR QUE?
>- porque aqui é o meu lugar. Entenda, aqui…
>- VAI SE FODER, VOCÊ É MALUCA!
>eu não queria mais saber
>eu não queria mais saber o motivo dela estar na Alemanha
>eu não queria saber como caralhos ela conseguiu cantar em uma ópera
>eu não queria saber o motivo dela fugir
>nem como ela estava em todos os lugares que eu estava
>até mesmo no Clube Folk
>eu só queria ir embora dali
>beber alguma coisa e descansar
>e então eu dei as costas para ela e fui embora
>eu estava decidido: voltaria para o Brasil no dia seguinte
...
>nono dia em Berlim
>eu refleti sobre tudo o que ela falou pra mim
>era pura maluquice
>não tinha como justificar
>tudo bem que não deu tempo dela falar tudo
>mas acho que ouvi o bastante
>antes de ir comprar minha passagem fui para um dos museus que tinha ido antes
>era o que eu mais tinha gostado
>me sentia observado
>algo me dizia que ela estaria ali
>ela sempre estava
>ela me seguia, pelo visto
>puta que pariu
>pela milésima vez, qual o problema dela?
>depois do museu, fui comer alguma coisa qualquer no Clube de Folk em vez de almoçar
>fui pro hotel, arrumei tudo e peguei um táxi
>sim, eu estava completamente decidido a ir embora
>estava farto daquela palhaçada
>deixei meu avô no hospital e não tenho contato com minha família há 9 dias (chamadas
internacionais custam caro)
>tudo por causa de uma maluca
>onde eu tava com a cabeça
>não tinham mais passagens para hoje
>eu comprei pro dia seguinte
>teria que ficar lá por mais tempo
>não tive ânimo nem de ir pro Clube de Folk
>só fiquei na minha cama
>olhando para o teto como nos velhos tempos
>eu tinha até as 14:00h para aproveitar um pouco de Berlim
>mas a verdade é que eu não queria ver aquela cidade nunca mais na minha vida
>eu não posso dizer que eu não queria mais ver a Ágata
>no fundo eu amava ela e não posso mentir sobre isso
>mas ao mesmo tempo não sei se conseguiria olhar na cara dela sem sentir raiva
>resolvi que só ia visitar o Clube de Folk pela última vez e revisitar o museu
>e foi isso que eu fiz
>depois peguei minhas coisas no hotel e peguei um táxi
>mas claro, nada na minha vida é simples
>teve uma porra de engarrafamento
>no começo parecia ser um probleminha
>mas o tempo foi passando
>e não parecia dar nenhum sinal de que iria acabar
>então eu decidi que nada iria atrapalhar minha volta para o Brasil
>eu simplesmente saí do táxi e comecei a andar pela calçada
>eu não sei como pretendia chegar no aeroporto
>mas eu simplesmente comecei a andar
>eu nem sabia o caminho direito
>essa viagem definitivamente mexeu comigo
>que porra eu tô fazendo da minha vida?
>há 2 anos atrás eu era um cara no balcão de uma locadora
>agora eu tô tentando ir para um aeroporto em Berlim a pé depois de sair de um táxi por
causa do engarrafamento
>eu provavelmente ia me atrasar pro meu vôo
>se é que eu ia conseguir chegar
>enfim
>claro que tinha que acontecer algum milagre, não é mesmo?
>é sobre isso que essa história é
>esse tipo de coisa que não deveria acontecer
>mas acontece
>- você consegue chegar lá sem morrer? Tá suando e respirando igual a um porco há uns quinze minutos
>aquela voz irreconhecível
>eu olhei pra trás, mas não a vi
>- do seu lado, imbecil!
>eu olhei pra pista
>ela estava em um dos carros do engarrafamento
>- como você sab…
>- eu não sabia, não dessa vez.
>- eu quero saber pra onde você tá indo?
>- eu não sei, você quer?
>eu respirei fundo
>a quem eu vou enganar?
>claro que eu queria
>- pra onde você tá indo?
>- pro aeroporto.
>- puta que pariu… - eu disse, rindo
>mas não era um riso de alegria, era… sei lá
>só era inacreditável
>- então, vai entrar no carro ou não?
>- por que eu entraria?
>- porque é o único jeito de você chegar no aeroporto.
>- primeiro: você me daria carona? E segundo: você não parece estar me uma posição muito
melhor que a minha, tá no engarrafamento.
>- só entra no carro… - ela disse, com voz de tédio
>eu não sei o que passou pela minha cabeça, mas eu entrei
>e então ela fez a… quer dizer, UMA DAS coisas mais malucas que eu já vi
>não tem como superar essa ida à Alemanha
>enfim
>ela jogou o carro na calçada e segui por ela até passar por todo o engarrafamento
>o engarrafamento tinha sido causado por um acidente entre 2 carros
>e quase que a gente se junta à eles
>- FICOU MALUCA?
>ela riu
>bem, se eu sobrevivesse à ela chegaria no aeroporto rápido
>- você deve ter perguntas.
>- Ágata, por favor, não…
>- okay. - ela deu de ombros
>quando chegamos no aeroporto, ela não saiu do carro
>- não vamos… nos despedir?
>- pensei que estivesse com raiva de mim. - ela respondeu
>- raiva? Eu te mataria, se pudesse.
>- aham…
>eu saí do carro
>- então é assim que acaba?
>- claro que não… - ela disse rindo – você vai voltar!
>e com isso partiu com o carro
>“você vai voltar” o caralho
>eu nunca mais vou olhar na cara dela
>e nem voltar pra essa cidade
...
>finalmente de volta ao Brasil
>foi mais fácil do que eu pensei
>curioso, por algum motivo eu senti saudade de Berlim
>era uma cidade bonita
>os museus eram bem legais
>e aquele Clube de Folk é… esquece
>eu não ia voltar nunca mais lá
>quando cheguei, o primeiro lugar que fui foi a minha casa
>ver se estava tudo bem com meu avô
>assim que cheguei ele percebeu e se levantou da poltrona
>- então você voltou da sua aventura, heim?
>eu só dei um abraço nele
>não falei nada, não precisava
>tudo que eu queria era saber se ele estava bem e ele estava
>ele também não perguntou, provavelmente esperando que eu mesmo começasse a falar
>mas eu passei o dia inteiro no quarto
>o teto nunca foi tão interessante
>também chorei muito, a quem vou enganar?
>mas estava feito
>de noite, achei que seria uma boa ideia ver meu sogro
>ex-sogro, pelo visto
>mas ainda assim era meu eterno professor e amigo
>e só ele sabia o que falar pra eu me sentir melhor
>assim que parei com o carro do meu pai lá ele saiu para ver
>- olha só, se não é o nosso turista!
>acho que ele percebeu meu mau-humor e ficou sério também
>- o que aconteceu? - ele perguntou
>- a sua filha… ela é maluca!
>ele começou a prender a risada
>isso me irritou
>- meu avô teve um infarto, o carro do meu pai quase foi apreendido, eu tive que viajar pra
outro país… pra ela falar que era tudo um jogo! UM JOGO!
>- acho que ela não se expressou muito bem, né…
>- o que o senhor sabe sobre isso?
>ele respirou fundo
>- não vai entrar?
>eu não respondi, mas entrei
>sentei no mesmo sofá que tenho sentado há muito tempo
>trocando a sala de aula vazia pela sala de estar dele
>ele sentou na mesma poltrona
>como se ela substituísse sua mesa
>- e então? O que o senhor sabe?
>- bem… tudo.
>eu tentei falar “o quê?”, mas acho que não saiu nada
>- é claro que eu não sei o que aconteceu lá na Alemanha, mas…
>- o senhor sabia que era só uma idiotice dela?
>- idiotice?
>- é, idiotice. Ela disse que queria… - nessa hora eu tive que respirar fundo – ela disse que só
queria me distrair.
>- você é bem lento…
>- quê?
>- será que você não percebe? Essa viagem foi a melhor coisa que você fez em anos.
>- não, não foi.
>- sim, foi! E você sabe disso, só tá mentindo pra si mesmo porque tem raiva dela agora.
>- o senhor tá de acordo com tudo isso?
>- me diga, o seu avô está bem?
>- sim, mas ele quase…
>- o carro está lá fora, pelo visto. Não foi apreendido, ou foi?
>- por pouco… não.
>- o que você fez lá?
>- saí para alguns lug…
>- “alguns lugares”? Acho que você pode fazer melhor do que isso!
>- bem, eu saí pra alguns museus…
>ele sorriu
>- o que mais?
>- fui… em uma peça de teatro.
>- mais alguma coisa?
>- fui pro BerlinAle.
>- pro BerlinAle, é? Se eu não me engano esse é o paraíso alemão dos cinéfilos.
>só agora, falando pra ele, eu percebi o quanto essa viagem foi incrível
>- okay, a viagem foi boa.
>ele riu
>- mas não justifica! Eu a amo e ela fugiu de mim, fugiu pra outro país, e quando eu a
encontrei, ela fugiu de novo.
>- ela te ama também.
>- então por que ela foge?
>- por que ela te ama, e esse é o fardo dela?
>- esse é o quê?
>eu tinha achado aquilo ridículo
>- o fardo dela. Ela está disposta a ficar longe de você, se isso significa acrescentar algo à sua
vida.
>- e como isso acrescenta algo à minha vida?
>- encontrá-la é sua meta, é seu objetivo, é seu sonho, sua distração. Exatamente como eu te
disse 2 anos atrás, com ela sentada nesse sofá… - ele disse, apontando pro espaço onde ela
ficava
>- ela não precisava fazer assim.
>- não, mas você sabe como ela é. Ela ama a Alemanha, e pensou que se tivesse que ficar
longe de você, que fosse lá. Lá tem muita coisa interessante, o próprio BerlinAle, além de que
Nietzsche…
>- ela não precisa ir pra Alemanha, ela nem precisava ficar longe de mim.
>- precisava.
>- tem jeitos melhores pra acrescentar sentido à vida de alguém.
>- quais? Vocês estão juntos há dois anos. Há dois anos, se me lembro bem, você prometeu a
ela que iria se livrar dessa sua crise existencial ridícula.
>- não é tão fácil assim…
>- não é! - ele concordou – e por isso ela fez do jeito dela.
>- então qual é o plano? Fugir e esperar que eu passe tempo demais procurando ela pra não
me preocupar em me matar de depressão? Por que enquanto eu tivesse ela, eu jamais faria
isso, agora…
>- enquanto você estivesse com ela, você não tentaria fazer isso. Mas sem ela, você COM
CERTEZA não faria isso. Você precisava ficar vivo, precisava ter foco, pois um dia talvez ela
voltasse, um dia talvez vocês se reencontrassem por mero fruto do acaso.
>- isso é loucura!
>- você já disse isso antes.
>eu parei pra pensar por alguns segundos
>era muita coisa pra assimilar
>- me diga, qual foi a última vez que você se sentiu incomodado com a sua “morte iminente
vindo a cavalo para você”?
>eu não respondi, ainda precisava pensar mais
>- como… como ela sabia?
>- sabia o quê?
>- como ela sabia que eu iria atrás dela?
>ele riu
>- ela sabia.
>- mas como? E se eu não fosse? Eu pensei nisso, na verdade, eu ia fazer isso.
>- mas não fez, você foi.
>- mas e se eu não fosse?
>- então ela não iria.
>- quê?
>ele se levantou da poltrona
>- eu vou pegar café, você quer?
>- COMO ASSIM “ELA NÃO IRIA”?
>- acho que isso foi um “não…”
>ele foi na cozinha, depois de um tempo voltou com uma xícara de café
>então se sentou novamente na sua poltrona
>- como… assim… “não iria”?
>- ela foi pra Alemanha depois de você.
>aquilo me deixou ainda mais irritado
>eu fui pra outro país atrás de alguém que estava na mesma cidade que eu
>ficamos em um silêncio desconfortável por um tempo
>- é muita coisa pra assimilar, eu sei, mas…
>- por que o senhor deixou tudo isso acontecer? O senhor pensaria em algo melhor, em algo…
menos doido. O senhor pensaria!
>- garoto…
>ele deu um gole no café
>- a ideia foi minha.
...
>eu poderia ficar extremamente surpreso
>poderia ficar extremamente irritado
>poderia gritar
>poderia sair dali naquele exato momento
>e pensei seriamente em fazer tudo isso
>mas recebi uma ligação
>- um momento. - eu disse pra ele, antes de atender
>era a minha mãe
>- alô?
>- onde você tá?
>- oi, eu tô na…
>- vem pra cá agora!
>a voz dela estava estranha
>- tá bom, o que ac…
>ela desligou na minha cara
>- eu preciso ir… - disse para ele
>- tudo bem.
>me levantei do sofá e saí
>- nos vemos mais tarde? - ele perguntou antes de eu passar pela porta
>eu não respondi
>chegando perto de casa, vi uma ambulância
>o meu avô estava sendo levado em uma maca
>eu corri na direção dele, minha mãe me parou
>- o que tá acontecendo?
>ela não respondeu, estava chorando
>ela apenas me abraçou, meu pai se aproximou de mim
>- vamos no carro.
>meu pai não estava chorando, mas parecia abalado
>- o que tá acontecendo, afinal?
>- ele teve um infarto, que droga! Vamos logo. - respondeu meu pai
>nós entramos no carro e fomos para o hospital
>aquele foi um dia tenso
>nunca irei me esquecer
>os momentos esperando no corredor
>a minha mãe chorando o tempo todo
>meu pai sério
>e eu me sentindo culpado por pensar em outras coisas
>por algum motivo não estava surpreso com isso também
>acho que minha capacidade de se surpreender já tinha acabado
>Ágata fez isso
>não sei dizer se é algo bom
>enfim
>ainda assim estava preocupado com meu avô, claro
>nesses últimos 2 anos eu me aproximei muito mais dele
>antes nossa relação era bem mais morna
>embora fosse melhor do que com o resto da minha família
>óbvio que eu queria que ele ficasse bem
>e então eu a vi a médica saindo da sala
>cada passo que ela dava pelo corredor parecia ser o primeiro de muitos
>ela não chegava nunca
>o corredor ficava maior
>mas eu não estava ansioso
>isso foi bom
>a demora fez com que eu me preparasse
>os segundos eternos que ela passou vindo na nossa direção foram o suficiente
>o semblante dela dizia tudo: estava preparada para dar uma má notícia
>quando ela chegou, eu já estava de luto
>apenas imaginava como a minha mãe iria lidar com isso
>- nós tentamos de tudo... - ela começou
>puta que pariu
>ela não podia ao menos tentar ser autêntica?
>- mas o paciente não apresentou melhoras. - completou
>- ele... ? - minha mãe estava enxugando as lágrimas
>- sinto muito, ele não resistiu. - confirmou a médica
>eu me levantei sem falar com ninguém
>nem mesmo fui consolar minha mãe
>apenas entrei na sala
>lá estava o meu velho
>o homem que me apresentou ao cinema
>completamente inerte
>ainda de olhos abertos
>eu não os fechei
>apenas o encarei por alguns instantes
>a médica veio atrás
>- você está bem? - ela perguntou
>eu não respondi
>fiquei ali, olhando nos olhos dele
>e juro: pude ouvir em alto e bom som
>"Por que está aqui, quando deveria estar tão longe?"
>não, ele não falou nada
>claro que não
>era apenas eu
>mas ouvir aquilo com a voz dele, e não com a minha fez a pergunta ter mais sentido
>porém dessa vez eu não sairia correndo atrás de Ágata
>eu não o deixaria no hospital sozinho
>não outra vez
>fiquei até o final
>vi o corpo ser levado
>e só então senti que era hora de voltar pra casa
>mas a pergunta ainda ecoava na minha mente
>isso me mantinha distraído o suficiente pra eu não pensar sobre como não tive a chance de
me despedir
>quando não se tem a chance de uma despedida clichê, é sempre mais dolorido
2 dias depois...
>o funeral foi simples
>como ele gostaria que fosse
>o enterro tinha muitas pessoas
>a família inteira veio
>o enterro não foi no dia seguinte justamente por isso
>para ter tempo de que todos viessem
>muitas pessoas tentavam me consolar
>mas eu não precisava
>ainda assim fui gentil com todos
>no fundo, eu estava bem
>a única coisa que me chateava era saber que poderia ter feito melhor
>2 anos era muito pouco
>tantas coisas que eu poderia ter dito antes
>feito antes
>e o que mais doía era que eu tive a chance
>eu não fiz pelo simples fato de que não quis
>de repente notei alguém ali deslocado
>me encarando
>esse não era da família
>era o meu ex-sogro
>o meu ex-professor de Física
>o meu ex-conselheiro
>acho que eram os melhores nomes para defini-lo
>ele se aproximou de mim
>eu pensei em simplesmente ir embora
>mas eu fiquei curioso pra saber o que ele iria dizer
>pra minha surpresa não disse nada
>apenas ficou olhando para o túmulo
>as pessoas foram embora
>até que só restamos eu e ele
>nós dois ali, olhando para o túmulo do meu avô
>começou a chover, mais clichê impossível
>esperei que ele dissesse algo
>as vezes ele quase abria a boca
>tinha certeza que ele iria dizer "sinto muito"
>então me agilizei
>- você sente muito, eu sei.
>ele sorriu
>- não sinto.
>- o quê?
>- eu não sinto muito... - ele olhou pra mim – eu não me importo.
>é, isso foi bem franco
>- e você também não.
>- claro que me importo!
>- não, não se importa. Isso te incomoda um pouco, mas não ao ponto de te deixar triste.
>no fundo ele estava certo
>- era um homem velho, um bom homem, mas velho. Uma hora ou outra aconteceria.
>eu não confirmei, mas também não neguei
>- além do mais, você é muito ocupado assombrado pela própria morte, pra se preocupar com
a morte alheia.
>- não preciso de você me lembrando o quanto eu sou babaca.
>- é, não precisa. Então vamos pular essa parte...
>- o que você quer?
>- você vai pra Alemanha.
>nesse momento eu me retirei
>ele foi atrás de mim
>- escuta!
>- eu não vou pra Alemanha! - gritei sem olhar pra trás
>- ao menos me ouça!
>- por favor, é o enterro do meu avô!
>- você precisa ir...
>nesse momento eu parei e me virei pra ele
>eu estava com raiva
>agora sim eu estava irritado
>- ah, é? Pra quê? Pra encontrar a sua filha maluca? Pra correr atrás de alguém que vai fugir de
novo?
>- é, isso aí.
>- muito engraçado!
>dei as costas novamente
>- você vai, e você sabe disso. E dessa vez, quando você encontra-la, ela não vai fugir de você!
>- como você sabe? - perguntei, ainda andando
>- é o que ela quer.
>eu parei novamente
>- e por que ela fugiu?
>- eu não sei, vai ver ela queria que você continuasse procurando. Ou vai ver você tá fazendo
do jeito errado.
>- como assim?
>- talvez... você não deva encontra-la, talvez ela deva.
>- então eu vou ficar onde estou.
>- não, existe algo.
>eu enfim resolvi ouvi-lo
>- "algo"?
>- algo que você não entendeu...
>eu respirei fundo
>- você sabe exatamente o que é, não é? - perguntei
>ele riu
>- é, eu sei.
>- vai me dizer?
>- não.
>voltamos para perto do túmulo
>- não vou ficar aqui por muito tempo, não trouxe um guarda-chuva...
>à essa altura estávamos encharcados
>pensei em algo que queria perguntar
>- como acha que ela sempre sabia onde eu estava?
>- não tem muito mistério, ela procurava você, você procurava ela.
>- mas em 1 ocasião, fui eu quem a encontrei.
>ele não me disse nada, estava esperando que eu continuasse
>- no teatro, ela estava no palco. Como diabos?
>- ela sempre quis ser atriz, deve ter conseguido o papel. Você sabe, ela gosta de cinema,
teatro é como cinema... só que mais vivo.
>- faz sentido, mas parece muita coincidência.
>- é, parece mesmo? O que você foi fazer no teatro?
>- um casal de portugueses me convidou...
>ele riu
>- são os tios dela. Ela deve ter pedido pra eles fazerem isso...
>fazia sentido
>eles estavam indo para o mesmo lugar que eu
>o Clube de Folk onde eu a encontrei pela primeira vez lá
>eu os encontrei primeiro
>era tudo uma encenação
>eles me levarem até lá para encontra-la
>impressionante como eu sou feito de idiota com tamanha facilidade
>- e então, você vai pra Alemanha?
>- eu não sei, eu preciso pensar sobre essa... "coisa" que você falou. O que eu estou fazendo
de errado.
>- não vai descobrir aqui... - ele disse, me entregando outra passagem
>coloquei no meu casaco rápido para não molhar
>- eu a procurei em cinemas, sabe. Em teatros também...
>- não a procure, viva Berlim. Viva a sua vida. Deixa acontecer.
>aquilo parecia loucura
>e era
...
>"veni, vidi, vici"
>essa frase, segundo dizem, foi proclamada por Júlio César
>"vim, vi, venci"
>por que isso importa?
>eu não sei, mas importa
>se não importasse, não estaria escrito no cantinho da minha passagem com caneta vermelha
>foi ele
>ele me disse que não contaria o que era o tal "algo" que eu não entendi
>mas aparentemente ele me deu uma dica
>isso ecoava na minha cabeça o tempo todo
>enquanto eu olhava para o teto
>em um apartamento... em Berlim
>1 ano já se passou
>muita coisa mudou desde então
>consegui um emprego como estagiário em uma emissora de TV nacional
>nada extraordinário, eu só faço organizar as fitas com arquivos e colocar adesivos
>adesivos com nome das filiais da emissora
>para saber o que vai pra onde, sabe?
>acho que isso é o suficiente pra um cara de 19 anos
>diferente da primeira vez que visitei Berlim, não a encontrei mais
>não a encontrei em lugar nenhum
>mas as vezes me sentia observado
>nos primeiros meses eu ainda achava que a encontraria por aí em algum lugar aleatório
>mas depois percebi que não seria assim
>eu era pequeno e o mundo era grande
>ela era tão pequena quanto eu
>eu só a encontrava antes porque ela queria
>resolvi fazer o que o pai dela sugeriu
>resolvi viver
>e foi a melhor coisa que já fiz
>Berlim é um lugar fantástico
>"veni, vidi, vici"
>o que aquilo queria dizer, afinal?
>foi em uma manhã indo pro estúdio que eu entendi
>eu encontrei um colega de trabalho
>ele estava de carro, perguntou se eu queria uma carona
>é claro que eu aceitei
>foi uma conversa longa
>conversamos sobre um monte de coisa que não importa agora
>também vimos alguns monumentos no caminho
>entre eles o Siegessäule
>- dá pra ver os buracos de balas da época da Segunda Guerra Mundial se a gente chegar bem
perto. - disse meu amigo, enquanto dirigia
>eu não sei o motivo dele ter falado isso
>mas por algum motivo fiquei interessado
>- o nome dele, o que significa?
>ele riu
>- as vezes eu esqueço que você não é alemão. É algo como Obelisco da Vitória.
>o assunto morreu ali
>mas eu continuei pensando no tal monumento
>"Obelisco da Vitória"
>talvez porque ter sido feita pra comemorar uma vitória em uma guerra
>talvez por ter uma estátua da deusa romana Vitória no topo
>ou talvez as duas coisas
>o dia no trabalho foi normal
>uma vez ou outra me peguei distraído pensando no tal monumento
>enfim
>quando eu acordo, passo um bom tempo olhando pro teto, como nos velhos tempos
>é sempre legal ter um assunto pra pensar
>nem me preocupo com niilismo existencial
>droga, isso realmente funcionava
>nem me lembro a última vez que parei pra me preocupar sobre minha insignificância
>mas não era como eu estivesse "curado" ou algo do tipo
>eu só controlava a coisa, sabe?
>enfim, funcionava
>foi na manhã seguinte que as coisas ficaram claras para mim
>olhando para o teto
>"veni, vidi, vici"
>"vim, vi, venci"
>"Obelisco da Vitória"
>"Vitória"
>"vici"
>"venci"
>por que caralhos meu colega falaria sobre um monumento histórico?
>então eu sorri, olhando pro teto
>era tudo sobre isso, não é mesmo?
>eu não estava fazendo errado em procurá-la
>eu só não estava procurando do jeito certo
>tinha que ser do jeito dela
>sempre tem que ser do jeito dela
(ouçam isso: https://www.youtube.com/watch?v=u-Y3KfJs6T0)
>5 horas da manhã
>uma neblina tomava conta de Berlim
>eu peguei um casaco
>me sentia seguido outra vez
>como não me sentia há muito tempo
>estava frio lá fora
>naquela manhã não fui trabalhar
>fui até o tal "obelisco da vitória"
>olhei bem pra ele
>- está vendo os buracos deixados pelas balas? - disse uma voz que eu conhecia, vindo de trás
>eu me virei
>e lá estava ela
>meu coração acelerou
>eu sorri, e nem queria sorrir
>sorri porque tinha vencido
>sorri porque aquilo tinha acabado
>"veni, vidi, vici"
>"vim, vi, venci"
>vim para a Alemanha
>vi o Obelisco da Vitória
>venci o joguinho dela
>- todo esse tempo, era isso que eu precisava fazer, não é?
>ela sorriu de volta
>- você demorou pra entender
>- a frase... ela estava nas outras passagens?
>- e no dinheiro.
>- é, eu não tinha percebido... e nem sei se teria entendido se percebesse.
>um silêncio pairou naquele lugar
>éramos apenas eu e ela ali, na neblina
>no frio de Berlim às 5 horas da manhã
>- você me fez atrasar pro trabalho.
>- é, eu já te atrasei antes.
>- atrasou... - eu disse rindo
>esse tipo de coisa me fazia lembrar que a vida é um ciclo
>- o meu colega... você pediu que ele me desse a carona, não é?
>ela não respondeu
>- também pediu que ele falasse sobre o Obelisco.
>- isso importa?
>demorei pra falar mais alguma coisa
>queria apenas aprecia-la ali
>- então é isso? Acabou? Você é minha?
>ela se aproximou de mim
>- Ágata... nós vamos ficar juntos dessa vez?
>- isso depende...
>ela se aproximou de mim
>nos beijamos
>foi um beijo bem longo, eu não queria que acabasse
>como na primeira vez
>então ela me olhou nos olhos
>não pude perceber quando sua boca se abriu para falar algo, mas pude ouvir
>- o universo é grande?
>- bastante. - respondi
>- e como você se sente sobre isso?
>eu sabia que eu não podia errar a resposta
>eu sabia que aquilo seria o que decidiria se ela ficaria ou não
>e também sabia que não podia mentir
>e só agora eu entendia
>entendia que aquela era a decisão da minha vida
>durante todo esse tempo
>eu por várias vezes me perguntei o motivo dela fazer tudo isso
>e quando ela disse que era pro meu bem, eu achei aquilo absurdo
>quando as coisas ficaram claras pra mim, eu achei um absurdo também
>mas não era
>eu só não tinha entendido o suficiente
>ela estava fazendo certo
>parecia loucura, mas era o certo
>e eu como sempre, agia como o cara chato
>o cara que reclamava de tudo
>mas agora, agora eu entendia
>e por isso eu venci
>obrigado, Ágata
>você é o sentido da minha vida
>"veni, vidi, vici"
FIM